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    Nuestro Tiempo
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Nuestro Tiempo

    Viver um relacionamento aberto

    por Bruno Carmelo

    À primeira vista, este parece ser um cenário de fácil leitura: numa gigantesca fazenda mexicana, os homens cuidam dos animais enquanto tecem comentários sobre as mulheres atraentes, os colhões dos touros e seus próprios pênis. As mulheres auxiliam o trabalho, mas se encontram em posição submissa em relação aos maridos e empregados. Gradativamente, no entanto, desenha-se algo além da presunção de machismo e da luta de classes. Juan (o diretor Carlos Reygadas) não é apenas vaqueiro e proprietário de terras, mas também um reconhecido poeta. Ester (Natalia López) está envolvida com a música clássica. Acima de tudo, eles mantêm um casamento aberto, o que permite relações sexuais com terceiros sem a constituição de infidelidade.

    Este aspecto se transforma no principal motor de conflito em Nosso Tempo. Enquanto o roteiro se esforça em demonstrar que os relacionamentos ao redor de Juan e Ester são mais tradicionais, constrói um interessante dilema para o macho alfa da fazenda diante da paixão da esposa por um domador de cavalos. De repente, este homem dividido entre a razão (os cuidados com a fazenda) e a emoção (a poesia) testa os limites de sua postura liberal. Racionalmente, sabe que não deveria se incomodar com a atitude da mulher, mas em meio a um casamento esfriado pelo tempo, teme que o caso implique um amor duradouro pelo amante e, portanto, a ruptura do casal. “O amor é inflexível e imperfeito”, ele explica, completando em outro momento: “Quando as coisas estão ruins, deixem passar”.

    A narrativa discute os relacionamentos por um ponto de vista maduro, questionando o casamento como posse, interrogando a dita “honra” do marido, o ciúme, além da dissociação entre o sexo e o amor, sem julgamentos morais nem religiosos. Reygadas contém a predileção por imagens chocantes e explícitas, tratando o sexo de modo direto, ainda que recatado – o próprio diretor, curiosamente, jamais aparece nu no papel principal, ao contrário de Natália Lopez. Quem recebe o tratamento mais violento são os animais, com cenas impressionantes de lutas de touros entre si ou um touro descontrolado atacando os cavalos, em metáfora ao estado emocional do protagonista. No entanto, mesmo que a duração da trama seja bem dividida entre ambos os personagens, incomoda o fato de a mulher ser vista, essencialmente, pelos olhos do marido ciumento, e não como sujeito ativo.

    Conhecido pelo apuro estético, o diretor se deleita com as possibilidades imagéticas da fazenda onde se passa a trama. Dispondo de planícies verdejantes, planas até o limite do horizonte, Reygadas utiliza a profundidade infinita com lentes grandes-angulares num formato scope, produzindo um belíssimo efeito de amplitude. A luz é trabalhada com tamanho requinte que beira o irreal. O momento em que os adolescentes brincam na represa, por exemplo, demonstra o talento de Reygadas para imprimir um senso cru de naturalismo, com a câmera posicionada no meio da ação, sobre um pequeno bote na água, como se o espectador fosse um daqueles jovens. Ao mesmo tempo, o estetismo beira o exercício de vaidade do autor, a exemplo do retrato do motor de um carro em movimento ou das rodas de um avião durante o pouso.

    No elenco, ambos os atores se saem muito bem. Natália Lopez confere à ideia do sexo livre uma elegância e despojamento preciosos, enquanto o diretor representa o impasse amoroso de modo contido durante a maior parte do tempo, até explodir em duas cenas finais, quando adota uma expressividade grotesca, exageradíssima, mais próxima do terror. Nosso Tempo produz a curiosa sensação de lutar entre dois estilos diferentes: por um lado, a vontade de produzir imagens grandiloquentes de sexo e brutalidade animal, chamando atenção à persona do diretor, normalmente associada a polêmicas, e por outro lado, a ambição de um registro elegante, contido, que permita o silêncio e a discussão ponderada sobre os limites do afeto. A mistura nem sempre funciona a contento, porém produz uma dezena de instantes memoráveis e uma discussão nuançada a respeito das configurações contemporâneas de relacionamento.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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