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    Simon & Theodore
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Simon & Theodore

    Ciranda dos desajustados

    por Bruno Carmelo

    Simon (Félix Moati) está buscando um presente para o filho. “Tem que ser inesquecível”, ele ressalta ao vendedor. Qual a idade? Não, o menino ainda não nasceu. Não, não pode ser uma foca de pelúcia. “Você não tem um animal mais nobre?”. Simon sente-se confortável na loja de brinquedos. Acredita que poderia trabalhar ali. O salário é bom? A cena de abertura de Simon & Théodore serve como boa introdução ao humor particular desta comédia dramática francesa: os personagens disparam frases abruptas, mudam de tema, expressam-se sem filtros e sem pensar nas consequências. Os diálogos ácidos se combinam com muita agressividade verbal e psicológica, entre pessoas com dificuldade de expressar tanto o amor quanto o ódio que nutrem uns pelos outros.

    Mikael Buch, diretor acostumado às sátiras sutis da comunidade judaica francesa (vide Let My People Go!), brinca com o sistema de crenças e pertencimento social: a rabina Rivka (Mélanie Bernier) acredita contribuir à sociedade pelo caminho da religião, abraçando os casos mais difíceis da sinagoga local; Edith (Audrey Lamy) trabalha com a ordem e a autoridade em seu emprego de vigia noturna, embora não possua o menor controle sobre as atividades do filho adolescente Théodore (Nils Othenin-Girard), garoto rebelde que encontra no judaísmo uma forma de chamar a atenção do pai ausente. Simon, marido de Rivka, sofre fortes distúrbios psicológicos que provocam a autoflagelação. O quarteto precisa cuidar de outras pessoas, mas quem vai cuidar dos cuidadores?

    Devido a uma série de encontros e desencontros fortuitos, os protagonistas acabam ajudando uns aos outros, vigiando a saúde e a segurança de pessoas que sequer conhecem. As duplas improváveis ainda incluem Paul (Philippe Rebbot) e Marc (Jean-Charles Clichet), dois homens igualmente deslocados. Numa chave fabular, beneficiada pelos golpes do acaso e pela bela trilha sonora orquestrada (com uso comedido das composições em cordas), o filme parte para a singela ideia de somos todos anjos da guarda uns dos outros, e que cada indivíduo equivale aos demais em suas manias, inadequações e busca por afeto. Em outras palavras, unimo-nos não pelo que temos de melhor, e sim por nossas fragilidades. Embora construam tipos sociais de comportamentos muito diversos, Buch e a corroteirista Maud Ameline conseguem se colocar na pele de cada um deles, conferindo o protagonismo a cada um dos membros desta família improvisada.

    Enquanto isso, a direção opta por um humor delicado, porém bastante eficaz. A cena dos olhares cruzados entre Theodore e Simon numa avenida e a explosão de agressividade deste último num vestiário do clube são muito bem construídas tanto pela comicidade quanto pelo drama: o olhar da câmera jamais ridiculariza os personagens, apenas o absurdo das circunstâncias. Buch transforma o afeto num gesto de estranhamento: Simon tem medo de ser ofensivo com a esposa, Edith receia ser mal compreendida pelo colega de trabalho, Paul teme dar esperanças falsas ao filho que mal conhece. De maneira orgânica e minimalista – a ação se passa em poucos dias, dentro de poucos bairros de Paris – os personagens são confrontados a suas inadequações e medos. A principal aventura, portanto, é de ordem psicológica, íntima.

    Visto por sua premissa, Simon & Theodore se assemelha a tantas produções indies que tratam de reunir figuras marginalizadas por suas carências. Felizmente, este filme se sobressai a este grupo pela qualidade do texto, pela complexidade dos personagens e pela noção de emancipação: o movimento proposto de Buch não se encontra apenas no equilíbrio entre pessoas desajustadas, e sim na possibilidade de autoaceitação, com o quarteto central encontrando uma satisfação não apesar de suas particularidades, e sim graças a elas. No papel principal, Félix Moati tem ótimo desempenho na construção do sujeito impulsivo, embora os olhos transbordem de afeto, em chave oposta àquela de Nils Othenin-Girard, cujo corpo retraído e olhar coberto pelos cabelos escondem uma postura de perpétuo confronto. Mélanie Bernier e Audrey Lamy, juntas, provocam alguns dos momentos mais comoventes da narrativa. Ao final, a trajetória errática de pais e filhos postiços não chega a um término propriamente dito: a jornada dos personagens vai enfim começar.

    Filme visto no 23º Festival de Cinema Judaico de São Paulo, em julho de 2019.

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