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    Estrada de Sonhos
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Estrada de Sonhos

    Lá vai a vida a rodar

    por João Vítor Figueira

    Estoques vazios nos supermercados, alta de preços em diversos setores, seca no abastecimento de combustível, escolas e universidades sem aulas, serviços básicos de transporte, saúde e segurança afetados. A greve dos caminhoneiros no Brasil em maio de 2018 serviu como ponto de partida para muitos debates no país, incluindo uma oportunidade de revisitar a uma conversa sobre a prevalência das rodovias em detrimento do sistema ferroviário para o transporte de cargas e de passageiros. Por isso, é proveitoso que um filme como Estrada de Sonhos chegue ao circuito nacional de salas neste contexto — especialmente quando se considera que a obra teve sua primeira exibição nos cinemas em 2015, no festival É Tudo Verdade.

    O diretor Pedro von Krüger mantém seu olhar em temas sobre o Brasil popular, como fez com o samba em Memória em Verde e Rosa e a paixão por futebol em Pulmão da Arquibancada, no documentário Estrada de Sonhos, que aborda a história das ferrovias no Brasil conjugando depoimentos de especialistas e relatos pessoais. O filme pensa o trem como um verbete, um signo aberto para muitos significados que são comentados à luz de saberes tão diversos quanto a poesia e a engenharia. Há espaço para falas de figuras como os escritores Ferreira Gullar (autor da letra de “O Trenzinho do Caipira”) e Adélia Prado, e ferroviários, maquinistas e historiadores.

    Por suas abordagens múltiplas, Estrada dos Sonhos acaba vasto em suas nuances temáticas, mas raso em algumas de suas pautas mais específicas. Falta um aprofundamento histórico, por exemplo, quando o filme se debruça sobre seus temas mais objetivos, como a escolha do presidente Juscelino Kubitschek de ostracizar as ferrovias, que comportam fluxos maiores e mais intensos de pessoas e cargas, pelas rodovias, menos eficientes, mas mais baratas do ponto de vista orçamentário. O diretor também lida com a dificuldade de balancear tantas vozes. Personagens e argumentos interessantes que poderiam ganhar mais tempo de tela acabam entrando e saindo de cena deixando a impressão de que poderiam ter aparecido por mais tempo e com melhor desenvolvimento.

    Ainda assim, o filme é forte quando aposta no material humano, nos depoimentos em primeira pessoa de trabalhadores e pessoas comuns que tiveram suas vidas afetadas de diversas maneiras por um meio de transporte que já foi símbolo do progresso e cuja permanência é constantemente ressignificada. Crianças comparam o trem a um objeto folclórico. Uma feirante que tira sustento vendendo refeições para passageiros de um dos raros trens que têm esta função no Brasil contribui de forma lúdica para o filme ao relembrar a música que criava em sua cabeça quando era criança e seu maior hobby era ver a locomotiva passar em ouvir o inconfundível som da maquinaria. Uma das propostas do filme é mostrar como o trem permite um contato com o um país profundo, remoto. Por isso, é importante ressaltar a potência do discurso de um homem que viveu uma situação análoga à escravidão, mas teve a oportunidade de deixar a vida laboral rural abusiva quando começou a trabalhar em uma estação de trem.

    Em suas tomadas, von Krüger usa muitas vezes uma estética de imagens distorcidas, como se quisesse fazer um comentário sobre a aridez dos trilhos em lugares remotos ou sobre a precarização de locais abandonados após a decadência do transporte locomotivo no Brasil. Esteticamente, é melhor quando o cineasta usa câmeras mais tradicionais e consegue capturar belas imagens.

    Por vezes, o longa-metragem parece assumir um discurso que quase desliza do saudosismo honesto para idealização do passado, mas ainda assim a obra sabe estabelecer pontes para o presente. Em um país com problemas estruturais, Estrada dos Sonhos mostra que falar sobre transporte é falar sobre sua função social, sobre acesso a cidadania e direitos constitucionais da população. O filme serve para denunciar (ainda que de forma tímida) como as políticas públicas são movidas por interesses econômicos e critica o descaso das autoridades pela preservação da memória — como são melancólicas as tomadas das ruínas de uma importante estação da Estrada de Ferro Mauá, a primeira do Brasil. Feito de concreto, ferrugem e memórias, o documentário consegue abordar uma pauta tão peculiar sem jamais perder a ternura.

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