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    Depois da Chuva
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Depois da Chuva

    Política íntima

    por Bruno Carmelo

    Após dezenas de filmes que retratam a ditadura militar e os efeitos do golpe nas gerações posteriores, esta trama aparece para abordar um período muito específico da história brasileira: os últimos meses do regime autoritário, em 1984, e o retorno às eleições diretas. Muitas pessoas celebravam a vitória da democracia, enquanto outras duvidavam dos candidatos presentes e da transformação efetiva da sociedade. É neste clima de ressaca e de desconfiança do futuro que se insere a narrativa do filme baiano.

    O primeiro terço da narrativa acompanha a rotina de Caio (Pedro Maia), jovem de espírito libertário que se opõe a qualquer forma de governo. Munido de um espírito anarquista, ele trabalha em uma rádio pirata, contribui com fanzines revolucionários e choca sua escola burguesa com uma performance rock transgênera. Este segmento anárquico é conduzido por uma montagem livre, fluida, pautada por cenas de personagens cantando, dançando, brincando, sem que o roteiro sinta a necessidade de incluir grandes reviravoltas.

    Trata-se de um momento naturalista, agradável de assistir, porque confere tempo aos personagens para se expressarem sem freios. É o enquadramento que corre para buscar cada rosto, focando e desfocando, deslizando e parando quando for necessário. Ao condicionarem a imagem à espontaneidade dos adolescentes, os diretores Marília Hughes e Cláudio Marques compõem uma estética humanista, repleta de boas cenas que remetem ao improviso, ao prazer real da interação entre os atores.

    O segmento anarquista também se encarrega de relacionar as utopias à imaturidade dos adolescentes. Caio quer impressionar o pai ausente, cativar a mãe pouco amorosa, de modo que a política surge como forma de chamar a atenção, de ser ouvido, de quebrar as barreiras da escola, da família e da sociedade. A psicologização da política transforma Depois da Chuva em uma obra metonímica, que pretende representar todos os conflitos da sociedade através de meia dúzia de personagens. A censura é retratada pela nota baixa a uma redação, o conservadorismo da classe média transparece na fala conformista da mãe.

    Sem mostrar multidões, sem recorrer às cenas de manifestações ou confrontos armados, o filme consegue ilustrar dores e conflitos, como se a política (algo público, por definição) pudesse ser compreendida por suas consequências íntimas. Esta é uma história sobre revolta contra o sistema, mas desprovida de violência, uma obra sobre transgressão sem sexo nem drogas, uma história sobre eleições sem disputa política, sem guerra de poder. O mundo externo está sugerido na fala dos personagens, e retratado através do filtro paródico da televisão – com imagens de arquivo e uma única referência à violência policial, em um hilário comercial de calças jeans.

    Mas a utopia transgressora de Caio não dura muito, e para evitar a expulsão da escola, o jovem se conforma às regras do sistema democrático. Esta segunda parte é mais lenta, mais convencional na maneira de filmar. Os enquadramentos se acalmam, os personagens não manifestam transgressões notáveis em tela, e o ritmo depende da interação romântica entre Caio e uma colega de turma. Este poderia ser o segmento menos interessante da história, se ele não preparasse para o ato final, quando o roteiro confronta anarquia e democracia, adolescência e vida adulta, vida e morte.

    Rumo à conclusão, aliás, os diretores encontram suas melhores cenas, em seu cenário mais vigoroso. Uma grande usina abandonada serve como pano de fundo para pelo menos dois diferentes de catarse, sempre colocadas em paralelo com a situação política do Brasil. Não é evidente relatar a morte de Tancredo Neves através de uma festa entre amigos libertários, mas os cineastas conseguem essa proeza com a ajuda de uma bela fotografia e de uma sequência eficaz, em que o espaço gigantesco funciona como metáfora do vazio na vida daqueles jovens. O diálogo entre dois amigos, de costas para a tela, versando sobre foguetes e perspectivas de futuro, é de cortar o coração.

    Depois da Chuva consegue ser um filme repleto de nuances sobre uma época de extremos, uma história doce sobre um tempo de violências. Isso é obtido graças à estética que valoriza o banal, e à direção de atores em busca composições cruas, pouco acadêmicas do elenco. Nos diálogos meios truncados de Caio, na câmera sempre colada à sua nuca, atravessando os cachos do seu cabelo, olhando os jovens com proximidade e interesse, o filme encontra um louvável tom de cumplicidade.

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