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    Rainha e País
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Rainha e País

    Ironia fina

    por Francisco Russo

    Por mais que tenha sido indicado em cinco categorias do Oscar, incluindo as de filme e direção, fato é que o tempo fez com que Esperança e Glória aos poucos fosse esquecido pelas novas gerações de cinéfilos. O mesmo vale para John Boorman, diretor do longa-metragem, que apesar de ter no currículo filmes do porte de Excalibur e Amargo Pesadelo, também perdeu terreno. Diante deste combate contra o esquecimento, Boorman teve uma decisão ousada: rodar uma continuação de Esperança e Glória, 17 anos após seu lançamento. Deu certo!

    Antes de tudo, é preciso ressaltar que não é necessário assistir ao longa original para acompanhar esta sequência. É bem verdade que há cenas emblemáticas que traçam um paralelo com o filme original, como a imagem inicial do garoto agradecendo a Adolf Hitler ou o movimento do jovem Bill ao manusear o remo de uma gôndola, mas é perfeitamente possível compreendê-las dentro do contexto deste novo filme. O mesmo vale para todo o trecho em que Bill retorna à ilha em que sua família mora; fica nítido que há ali toda uma história implícita, mas nada que te impeça a acompanhar o que acontece agora. De toda forma, é claro que ao ver os dois longas será possível perceber tais detalhes, às vezes minúsculos, mas que complementam a saga dos personagens envolvidos como um todo.

    O grande trunfo de Rainha e País é o modo extremamente sarcástico e debochado com o qual Boorman constrói (e desconstrói) a estrutura de poder do exército britânico. O próprio título original, “Queen & Country”, é uma referência à devoção feita à rainha e ao país, tão popular em terras britânicas (no Brasil, por mais que o título tenha sido traduzido ao pé da letra, esta ironia não fica tão explícita). Para tanto, o diretor conta com dois jovens sargentos (Callum Turner e Caleb Landry Jones, ambos muito bem) cuja amizade é também nas tentativas contínuas de esculhambar seus superiores. Entretanto, é importante ressaltar: por mais que haja aqui uma crítica ao autoritarismo no exército, ela está longe de ser a anarquia irônica explorada por Robert Altman em M.A.S.H. Desde o início, a intenção de Boorman é compreender o porquê de tamanha disciplina forçada e ressaltar o quanto ela não faz sentido, mas mantendo o respeito ao exército como instituição – algo que não acontece no filme de Altman, por exemplo.

    Diante desta proposta, Rainha e País oferece várias sequências de um humor cínico saboroso, muitas vezes explicitando as contradições envolvendo os atos do exército. O melhor exemplo talvez seja a aula ministrada pelo personagem de Callum Turner, quando diz várias verdades sobre a Guerra da Coreia tendo por base o que havia sido publicado pelo jornal The London Times, intocável por ser “a bíblia da classe dominante” (palavras do próprio filme). Ou seja, além das diferenças entre o que é pregado e o que é na realidade no ambiente da guerra, ainda há uma crítica implícita à própria sociedade inglesa. O mesmo vale para os heróis da Segunda Guerra Mundial, em certos casos apontados como loucos por gente do próprio exército, em um surto de franqueza surpreendente.

    Em meio às hábeis provocações ao status quo britânico, Boorman também oferece ao público uma história de amor típica das que vivenciaram jovens soldados prestes a ir para a guerra. Por mais que sejam muito amigos, os personagens de Turner e Jones possuem personalidades distintas e, como tal, lidam com o amor de forma bem diferente. Se Jones segue a linha do adolescente fogoso louco para ter sexo, Turner acredita no amor e investe nele ao conhecer uma misteriosa mulher mais velha, com quem passa a encontrar com uma certa frequência. É a deixa para que o personagem retorne às suas raízes, criando mais uma ligação deste filme com Esperança e Glória.

    Com um roteiro afiado, escrito pelo próprio John Boorman, Rainha e País é um filme jovial de espírito e na contestação, que demonstra um vigor surpreendente para um diretor de 82 anos. Inteligente e com um ótimo elenco, o filme ainda brilha através do insólito Redmond (Pat Shortt), um veterano do quartel que se orgulha de ser o maior de todos os malandros do exército. Muito bom.

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