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    Amar, Beber e Cantar
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Amar, Beber e Cantar

    Funeral entre amigos

    por Bruno Carmelo

    O estranhamento diante deste filme francês começa logo nos créditos de abertura. Uma câmera fluida, posicionada a uns 3 metros do chão, desliza pelas ruas de um vilarejo inglês, mostrando a arquitetura e as ruas. Esse ponto de vista etéreo não corresponde ao olhar de nenhum personagem – a não ser que se trate de um olhar externo, divino -, sendo uma panorâmica inovadora da cidade. Enquanto isso, os créditos surgem sobre um precário quadrado preto, com letras vermelhas impressas em grafia simples, contrastando com as belas paisagens ao fundo. Esta bizarrice é perfeita para preparar o espectador a Amar, Beber e Cantar.

    O diretor Alain Resnais explora mais uma vez o potencial do teatro, da artificialidade e do cruzamento de linguagens. Ele parte de um texto simplíssimo: a peça “Life of Riley”, do dramaturgo Alan Ayckbourn, sobre uma trupe de teatro amador, afetada pela doença grave de um amigo próximo. Com este único conflito, o diretor combina paisagens britânicas com desenhos, animação e cenários teatrais. Esses registros não apenas se sucedem, mas interferem uns nos outros de maneira curiosa: ora os desenhos sugerem que o pequeno cenário em papelão corresponde na verdade a uma grande mansão, ora um diálogo é retirado de seu contexto, com os personagens falando sozinhos diante de um fundo animado abstrato, que destaca apenas as atuações.

    Felizmente, para dar conta de tamanha atenção do diretor aos personagens, Amar, Beber e Cantar conta com um elenco dos sonhos, que transita com imensa facilidade entre a comédia sofisticada e o drama contido. Com exceção de André Dussollier, com um papel menor do que o dos colegas, Sabine Azéma, Michel Vuillermoz, Hippolyte Girardot, Sandrine Kiberlain e Caroline Silhol deliciam-se com seus personagens ambíguos e falhos, encarregados de transmitir diversas nuances com pouca ação, poucos deslocamentos no espaço. Na maioria dos casos, os personagens encontram-se em duplas, conversam pelos cantos e se afastam. Simples assim. As conversas são coloquiais, marcadas por um vocabulário tão acessível quanto sarcástico. Os encontros furtivos se encadeiam como em uma partitura de ritmo leve. Ao contrário de Eric Rohmer, cineasta francês obcecado pelo espaço, Resnais sempre foi apaixonado pelo tempo.

    O tempo, aliás, parece ser um dos temas principais desta história. Sejam os dias de vida que restam a George, os relógios que Colin (Girardot) nunca consegue controlar, as pausas que a atriz Kathryn (Azéma) insiste em colocar nos seus diálogos, o atraso da diretora Peggy, ironicamente conhecida por sua pontualidade, o medo da morte presente em diversos diálogos, as histórias das mulheres com George no passado ou os planos do próprio enfermo para a viagem no futuro. Enquanto isso, uma cartela hilária e artificial avisa que o tempo passou, e já estamos em outra estação. O tempo, neste filme, é um mecanismo tão precário e caótico quanto os próprios personagens. Ao retirar o naturalismo dos cenários e da trama, ao impedir que o onipresente George apareça nas imagens, Resnais insere seu filme no divertido terreno da fábula atemporal.

    Seria absurdo reclamar de superficialidade em um filme feito para ser justamente uma traquinagem – cuja leveza, vale destacar, nunca impede uma construção respeitosa e complexa da trupe de atores. A suposta teatralidade de Amar, Beber e Cantar também não se sustenta pela presença constante da câmera colada aos atores, deslocando-se livremente entre os móveis no palco, trabalhando de modo ativo a percepção extra-quadro. Resnais delicia-se com as frases, os gestos, os olhares desta pequena farsa colorida e juvenil. Às vezes, insere alguns momentos sombrios (o castor, a foto no final), para solicitar permanentemente a atenção e o estranhamento do público. Assim, termina a sua carreira com uma obra deliciosa, sem pretensões de grandeza ou genialidade. Melhor assim.

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