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    Sobrevivente
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Sobrevivente

    O herói sem qualidades

    por Bruno Carmelo

    Em uma das cenas iniciais, o solitário Gulli (Ólafur Darri Ólafsson) presencia uma briga de bar. O conflito não é muito sério, mas Gulli avança sobre os dois homens com uma fúria fora do comum, tentando separá-los. Acaba machucando a mão. Todas as pessoas ao redor observam este homem estranho, desconhecido, e afastam-se. Ninguém pensa em agradecer, afinal, este parece menos um ato de heroísmo do que de loucura.

    Alguns dias mais tarde, Gulli enfrenta outro conflito desproporcional, mas em escala muito maior. Ele viaja com os amigos pescadores para capturar peixes em alto mar, mas o barco naufraga. Os colegas são mais experientes, mais atléticos, mas ele é o único que sobrevive à baixa temperatura da água. Se este fosse um filme de Hollywood, teria resistido o homem mais inteligente, mais belo, com maior força de vontade, com esposa e filhos para criar. Em Sobrevivente, resiste o mais fraco, mais paspalhão, que em sua primeira entrevista após o incidente, narra a conversa que teve com as gaivotas no céu. “Você tem esposa, gaivota?”, ele teria perguntado à ave.

    O mistério do herói incomum constituiu o maior interesse deste pequeno filme islandês. Gulli não é exatamente um anti-herói, como seria o malandro Macunaíma ou o enlouquecido Dom Quixote. Ele é apenas banal, sem qualidades. A vitória de Gulli constitui uma afronta à meritocracia, à noção de destino divino (afinal, outros tripulantes tinham mais a perder, por terem filhos e esposas) e principalmente à ciência. A conquista deste homem é chamada por alguns de heroísmo, mas para os vizinhos, ele é um ser diferente, sobre-humano, e portanto indesejável.

    Infelizmente, a complexa discussão do filme ganha uma abordagem incoerente do diretor Baltasar Kormákur. O cineasta hesita entre duas tendências estéticas quase opostas. A primeira delas é o naturalismo completo, com discretos efeitos sonoros durante a cena do naufrágio, ausência de trilha sonora e câmera próxima aos personagens. Mas logo após fazer escolhas pouco sentimentais, entra em cena uma montagem paralela melodramática, mostrando a esposa de um dos pescadores cheirando saudosamente a camiseta do marido, e o próprio Gulli boiando nas águas, prometendo a Deus ser uma pessoa melhor caso sobreviva. Kormákur oscila o tempo inteiro entre o minimalismo e o espetáculo, a razão e a emoção.

    Passada a tragédia, a estética ganha novas escolhas surpreendentes. Enquanto os cientistas fazem testes com Gulli, submetendo-o mais uma vez ao trauma de ficar sob a água gelada durante horas, a câmera aproxima-se deste homem com reverência, como se estivesse efetivamente diante de alguém fora do comum. A fotografia adota tons muito superexpostos, fazendo com que qualquer raio de sol se transforme em um borrão branco - uma imagem próxima ao imaginário de céu, de milagre. A atuação de Ólafsson reforça a inteligência limitada do personagem, com tons quase cômicos, mas o filme encara o protagonista com a mesma solenidade e exotismo dos vizinhos ao redor.

    Por fim, Sobrevivente impressiona pelas temas debatidos, atípicos no cinema, e pelo grau de psicologia que consegue embutir em um gênero tão engessado quanto o filme-catástrofe. Se Kormákur adotasse ao longo da projeção uma posição única (fosse ela a do minimalismo, da grandiosidade, do acaso ou do destino), Gulli ganharia contornos ainda mais profundos. Da maneira como foi retratado, este homem permanece um mistério, mesmo após 96 minutos de projeção. O diretor ainda insere algumas fotos do verdadeiro sobrevivente da catástrofe, para mostrar que fez o retrato mais fiel possível, mas acaba reforçando a pouca crença na autonomia de suas próprias imagens. O caso ainda desperta fascínio, mesmo se (ou talvez justamente porque) a história de Gulli não teve uma explicação definitiva nem para os islandeses, nem para os espectadores.

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