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    O Moinho e a Cruz
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    O Moinho e a Cruz

    Como nasce um quadro?

    por Bruno Carmelo

    É uma boa surpresa que uma produção como O Moinho e a Cruz chegue nos cinemas brasileiros. Que o filme seja apreciado ou não, ele tem uma proposta inovadora e conceitual, rara de se encontrar no mercado cinematográfico atual. Por "conceitual", entenda um filme que não tem uma mensagem a passar, nem uma história a contar. Pelo contrário, ele quer levantar questões, misturar nossos pontos de referência e nossas certezas. O filme quer instigar, não explicar.

    Esta proposta singular de hibridismo entre cinema e artes plásticas explora algumas das maiores questões inerentes à criação artística: da origem do talento às etapas da realização, da apropriação da História às questões de representação do real. Tudo isso surge através de uma premissa simples: decompor em um filme as centenas de elementos do quadro de Pieter Bruegel sobre a Paixão de Cristo, "A Procissão para o Calvário", de 1564. Não se deseja contar toda a história do pintor belga, nem fazer um panorama de sua obra. O Moinho e a Cruz deseja experimentar a partir de uma única obra, de uma única imagem.

    Sem uma trajetória linear a seguir, o filme encadeia blocos de imagens: no início vemos pessoas reconstituindo o quadro, imóveis nas posições exatas da pintura original, enquanto suas roupas tremem ao vento e indicam que aquilo, de fato, é apenas uma representação (e o cinema, em sua natureza de "fotografia animada", espelha-se nesta experiência). Em outros momentos imagina-se a vida daquelas pessoas, comendo, dormindo, brincando no campo, lutam contra a selvagem invasão espanhola. Por fim, ocasionalmente o próprio Bruegel (Rutger Hauer) explica a um amigo suas intenções com esta obra, sua construção passo a passo da pintura.

    Esta descrição de intenções artísticas irritou diversos críticos de cinema, que taxaram a obra de pedagógica, mas talvez O Moinho e a Cruz proponha apenas uma versão imaginada – e assumidamente subjetiva – das motivações de Bruegel. O filme busca, com uma curiosidade obsessiva, imaginar cada passo, cada pincelada, cada escolha e cada símbolo. É irrelevante saber se as vontades do pintor eram realmente estas, já que o filme assume sua postura de "ficção sobre fatos reais". Ao mesmo tempo, diante de centenas de figurantes imóveis em um espaço aberto, é louvável que a câmera se recuse a penetrar este espaço, a "mergulhar no quadro", respeitando o ponto de vista frontal e externo, típico do espectador comum diante da obra de arte.

    Enquanto isso, o público do filme é recompensado com um apuro visual incrível, coroado de efeitos especiais discretos, destinados justamente a alimentar a atmosfera de realismo fantástico. Os cenários sempre têm profundidade de campo infinita; as paisagens reais fundem-se, na linha do horizonte, com os quadros do pintor; a iluminação natural cria volume nos tecidos das roupas e dos cobertores sobre as camas. A câmera ora desliza em longos movimentos panorâmicos, ora sobe aos céus e mostra a cidade em posições anguladas. Esta incursão cerebral pela metafísica e pela arte ganha uma narração ocasional e belíssima de Charlotte Rampling (no papel de Maria, mãe de Jesus), dando grande profundidade a um texto simples.

    Nesta obra fascinada pela representação de todos os elementos presentes na "Processão para o Calvário", chega a ser curioso o respeito tão grande com a figura de Jesus, que nunca tem seu rosto mostrado. No final, em sua grande simplicidade narrativa e duração enxuta – apenas 90 minutos – este filme fascina não apenas pela criatividade e pelo preciosismo estético, mas também por seu interesse profundo e questionador a partir de uma única obra de arte.

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