O texto todo tem Spoiler.
Sobre a subjetividade humana ainda há muito que se falar, e o filme de Lynne Ramsay: Precisamos falar sobre o Kevin, comprova essa teoria. A narrativa demarca uma possibilidade para o posicionamento mãe-criança, dentro dessa cadeia imaginária de significantes resultantes na estrutura perversa. A obra é uma adaptação do romance de mesmo nome, que retoma a história de uma chacina que ocorreria em uma escola dos Estados Unidos, algo também que já é muito falado nas experiências americanas. No entanto o foco principal do discurso do longa é o drama de Eva (Tilda Swinton), uma mulher disposta a experimentar os prazeres da vida sem limites, que nunca quis ser mãe, mas que dá a luz a Kevin (Jasper Newell/ Ezra Miller), um menino que no decorrer de seu desenvolvimento apresenta comportamento extremamente hostil e agressivo, especialmente com ela, demonstrando prazer no sofrimento da mãe. Nem mesmo o casamento de Eva com Franklin (John C. Reilly) e a chagada na família de sua filha Célia (Ursula Parker) conseguem transformar a relação ambivalente de Eva com o filho, levando o espectador a tentar digerir um relacionamento marcado pela perversão, obrigando-o a falar sobre um tema o qual não tem muito conhecimento, porque, talvez, sempre fora mais fácil ignorar,
A narrativa alinear oscila entre o presente de Eva, devastado com os resultados das ações do filho: sua solidão, sua dependência de medicamentos, a injúria e maus tratos dos vizinhos e colegas de trabalho; com as lembranças de seu passado, uma tentativa fracassada de viver conforme as circunstâncias: o nascimento indesejado do filho, o seu casamento, o nascimento de sua outra filha e ate então a chacina na escola. Nesse sentido as sequencias são sobrepostas com as vivências de seu passado traumático, a culpa de seu presente, junto a falta de perspectiva para o seu futuro.
O filme inicia-se em uma cena sem som, em preto e branco, na imagem apenas o balançar suave e lento das cortinhas de uma janela para onde a câmera se dirige, sugerindo nos mostrar algo. A cena corta e podemos ver, em outra, o que a anterior sugeria: a vida de Eva, contraditória a calmaria da primeira imagem, conturbada, inconsistente, estimulante, chocante, comparada a um festival de tomates, como nos lembra as imagens que se seguem, sob as quais avista-se de cima, um mar de gente confluindo em meio ao vermelho sangue dos frutos, tão intenso como vazio atual da vida da personagem, como confirma-se nas cenas posteriores. A primeira cena do filme, da janela, no decorre da narrativa, é a mesma que nos mostra outra situação angustiante, contraditória, provando que nada é apenas o que aparenta: há muito mais para se falar quanto se trata do comportamento humano.
A ambivalência então, se torna a essência do discurso no filme, assim como a cor vermelha o seu relator. Nessa linha, essa narrativa comprova que a vida termina como começa , quando Eva nunca quis ser mãe e tem que se haver com o fato de sua gravidez inesperada: e simbólico nascimento do filho é também a sua morte. A sequência do nascimento é tão angustiante para ela, quanto para o seu espectador: a imagem turva confirma a ausência de desejo da mãe para com o filho, sua instabilidade, acompanhada pela fala da médica dizendo para ela não resistir quanto ao nascimento da criança. Mas não resistir ao seu nascimento seria confirmar a morte de quem ela é, em seu imaginário.
A relação de Eva com o filho durante o seu desenvolvimento é marcada pela dor e o prazer, o sofrimento e a satisfação: os sentimentos mais penosos cabem à mãe, enquanto que os prazerosos são sempre do seu filho, condicionados à dor de Eva. Ela não sabe lhe dar com a criança, não sabe como demonstrar amor (quando, culpada, acredita que possa não o ter), e em vista de sua fragilidade, o menino sempre busca dominá-la, inserindo-a em suas ações sádicas, perversas, para a sua satisfação pulsional. A falta de autoridade da mãe também é encontrada no pai, mais vulnerável, impotente às atitudes do filho, sempre muito passivo e ausente, um alvo fácil para a criança que, dissimulada, tenta agradá-lo, apenas para confirma para a sua mãe a sua “impotência”, e reafirmar a sua autossuficiência narcísica. Nesse transcorrer narrativo, identifica-se pouco a pouco um sujeito perverso, enquanto estrutura psíquica, a sua constituição e o seu desenvolvimento, junto a um cenário apropriado a essa condição de subjetividade.
A constituição do sujeito e assim como da estrutura narrativa é condicionada pela teia de sentimentos distintos que se estruturam em significados importantes no desenvolvimento do enredo fílmico. Afinal, a relação entre mãe e filho é marcada por ambiguidades que convergem apropriadamente com a estética e a trilha sonora da narrativa, demonstrando o contraditório dos relacionamentos, mas especialmente da relação entre mãe e filho. Por isso, a imagem representada é instável em sua linearidade temporal, a cor vermelha é sempre invasiva, mesmo em cenas em que é mal quista; a câmera lenta registra imagens contraditórias a angustia expressa na encenação e a música sempre ritmada sobre notas que expressam alegria ou traduzem o amor em sua letra, em contradição ao drama e ao sofrimento que se expressa na tela.
O ápice do filme se atém não na tragédia ocasionada por Kevin, o que acarreta no massacre em sua escola e na morte de seu pai e de sua irmã, mas nas visitas que Eva, mesmo depois de todo o ocorrido, faz ao filho no presídio. Encontros sempre muito silenciosos, como se um esperasse sempre algo do outro, refletindo um pouco da posição dos espectadores desesperados por uma explicação sobre o desenrolar da história. E para o alívio de alguns, em uma dessas visitas, a mãe pergunta a ele o porquê do que fez, e sua resposta é clara: “Eu achava que você sabia... Agora não tenho tanta certeza”. A afirmação do personagem comprovaria que a essência do comportamento perverso poderia ser sustentado pelo relacionamento da mãe com o filho, ou explicado pelo estrutura familiar, pois a própria culpa de Eva por rejeitar seu bebê (um posicionamento percebido por ele) a condiciona a aceitar o lugar de objeto frente as demandas perversas da criança. Apenas isso, provavelmente não, e a incerteza na resposta de Kevin comprova esse fato: muitas correntes teóricas poderiam tentar explicar a origem de um comportamento perverso. O principal foco seria a mãe, Eva, emergida na culpa e o filho na sua satisfação de seus desejos para com ela. Mas a verdade é que pouco se fala no assunto, ou por ser chocante demais aos idealistas, ou por as pessoas não saberem o que fazer com ele, afinal, Eva também não sabia o que fazer com Kevin.