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    Fahrenheit 451
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Fahrenheit 451

    Por que queimam os livros?

    por Bruno Carmelo

    No século XXI, não existe uma ideia ou referência que não possa ser transformada em produto pop. Depois de passar pela versão dramática de François Truffaut na década de 1966, a distopia escrita por Ray Bradbury acaba de ser enquadrada no cinema de ação comercial pelo diretor Ramin Bahrani. Prepare-se para a montagem frenética, as grandes cenas de perseguição, telas translúcidas com tecnologia futurista, instrumentos de realidade virtual, horizontes de arranha-céus refletindo transmissões sensacionalistas da mídia. No futuro, aparentemente, a imagem será consumida em excesso, mas os livros são considerados um perigo.

    O foco da obra original se mantém: os “bombeiros” são encarregados de queimar todos os livros do país. Eles desenvolvem uma cultura de aversão à literatura, embora permitam poucos livros oficiais, como a Bíblia e Moby Dick. O imaginário azulado e as iluminações escuras típicas da ficção científica serão reconhecidos pelo espectador, porém o roteiro se recusa a desenvolver os detalhes que tornariam este cenário palpável: se os livros são proibidos, como ocorre a educação na infância? O que foi feito dos escritores e editores? Por que a literatura é considerada pior do que outras artes como a pintura, o cinema, o teatro? O que fazer de artes imateriais como a música? Quais exemplos são considerados particularmente nocivos? Quando esta proibição começou? Como se instaurou esta forma de governo? 

    Fahrenheit 451 se ocupa demais com as reviravoltas para desenvolver as circunstâncias distópicas e a personalidade dos personagens. Eles não existem fora da função de queimadores de livros: o jovem Guy Montag (Michael B. Jordan), nosso herói, tem um único trauma de infância para ocupar sua mente na vida adulta, enquanto seu mentor, o capitão Beatty (Michael Shannon), constitui um raro opositor aos livros com amplo conhecimento literário. O filme de Bahrani é utilitarista, partindo direto ao que interessa: os perigos, os livros escondidos, a resistência, os planos da polícia. Cada cena, objeto ou personagem é incluído por sua serventia ao desenvolvimento da trama. Não existem momentos de respiro ou reflexão.

    Em sua mecânica linear, talvez o diretor tenha se distanciado do foco original. A obra literária constituía uma evidente alegoria. Não se tratava de uma sociedade à parte, e sim a alusão ao mundo real – no caso, a sociedade dos anos 1950. Mas atualmente, nos tempos de vício em tecnologia, obsessão por redes sociais, “fatos alternativos” e o fascismo descomplexado dos portais da Internet, uma reflexão sobre o culto oficial à ignorância seria bem-vinda. Infelizmente, o filme se leva muito a sério, sem permitir o distanciamento, a crítica, a atualização para nosso contexto, exceto pela introdução das redes sociais e por pequenos detalhes – por exemplo, Harry Potter está entre os livros queimados.

    O processo de conscientização de Guy sobre a importância da arte é veloz demais, e perde alguns aspectos importantes: o que haveria, afinal, de tão subversivo na arte? O filme não sabe responder a esta pergunta fundamental. “Os livros nos deixam confusos”, explica Beatty, mas a ideia é simples demais para justificar uma perseguição em nível nacional. O que existe de tão perigoso no conhecimento, nas artes? Em que consiste esta confusão, o que significa a presença de um pensamento único, a supressão da liberdade de expressão? A referência ao nazismo e às ditaduras está a um palmo de distância. Faltava alcançá-la.

    Além destas questões, Fahrenheit 451 confunde informação e conhecimento. A literatura se transforma numa extensa citação de títulos, autores – em outras palavras, nomes e marcas. Mas de que maneira as obras influenciam as pessoas? Neste filme em que a sociedade está praticamente ausente, assim como o governo opressor, não percebemos nem o valor da arte, nem a falta da mesma quando é suprimida. O projeto cumpre seu papel de entretenimento, confirma a mensagem de que livros precisam ser conservados, mas não parece compreender o motivo de sua defesa.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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    Comentários

    • 9 de cada 10 stars usam LUXO!
      Mais uma americanada. Os filmes alienantes made in USA deixaram de lado o conteúdo para que o fundamental, o 'argumento', seja apenas pretexto, suporte, para os bacocos efeitos especiais. Para quê colocar interrogações aos espectador, se a intenção é que o público seja acrítico? Uma massa estupidificada é atraída pelas chamas, pelas explosões, pela montagem em vertigem, esquizofrénica, não para que pense mas sim para que se excite.A cultura chegou ali e parou. Se à saída do cinema os pagantes comentarem: gandas cenas!, está cumprido o objectivo!.
    • Henrique
      não mexas com a língua portuguesa!
    • Tim Meme
      Não mecham com os clássicos !
    • Cl?bio Goulart Coimbra Filho C
      Li o livro primeiro e depois vi o filme. No livro a Clarisse só aparece no início depois some ou morre (fica uma dúvida), no filme é quase protagonista. O bombeiro Montag tem esposa e não aparece e nem é citada no filme. Qdo Montag foge no final pula num rio e depois encontra, ao lado de uma fogueira na mata, alguns escritores rebeldes e no filme aparece um bando que decora os livros. Me parece que só a cena da mulher pegando fogo com os livros em sua própria casa e Montag botando fogo em sua casa que segue o livro. Portanto, leiam o livro e não vejam o filme!!! É futurista demais e Bradbury escreveu na década de 50!!!!1
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