Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Divino Amor

Verde amarelo neon

por Bruno Carmelo

Dentro de apenas oito anos, o Brasil se transforma numa república evangélica. O Carnaval é substituído por grandes festas de música gospel. A tecnologia permite detectar, pelos scanners de segurança na entrada de um edifício, se uma pessoa está casada, solteira ou divorciada, ou se a mulher está grávida e o filho já foi registrado. Em questão de segundos, uma paternidade pode ser verificada para impedir os rebentos bastardos. Caso alguém esteja com pressa para ir a uma igreja, pode receber atendimento personalizado via Drive Thru.

É engraçado por ser absurdo; é terrível por não ser tão absurdo assim. Em Divino Amor, o diretor Gabriel Mascaro imagina um leve aprofundamento de determinadas tendências, conferindo atenção específica à religião, à tecnologia e ao individualismo. No centro da trama se encontra um casal evangélico exemplar: Joana (Dira Paes) e Danilo (Júlio Machado), cujo trabalho para o governo se confunde com a dedicação direta a Deus. Enquanto ela luta para evitar divórcios num cartório, ele prepara coroas de flores para funerais cristãos. Falta um único elemento para que a vida de ambos esteja completa: um filho que tarda a chegar.

A normalização das pressões sociais é muito bem trabalhada no projeto. Com a placidez típica ao discurso cristão, Joana escuta que “Basta ter fé”, “Deus sabe o que faz”, “A recompensa chegará na hora certa”. O novo Brasil é tomado por uma banalização retórica e estética: os ambientes de trabalho são assépticos, as casas são idênticas e impessoais, os lugares de culto trazem como única decoração uma logomarca e as luzes multicoloridas projetadas sobre paredes brancas. Flores e sorrisos abundam por todos os cantos, mas as pessoas ocultam um sofrimento crônico por não corresponderem aos padrões ideais lançados pela espiritualidade.

A excelente direção de arte de Thales Junqueira, em conjunção com a fotografia impecável de Diego García, estabelece uma atmosfera afável, sem asperezas, e também sem identidade. Parte considerável do teor crítico deste filme provém deste apocalipse kitsch transformado em ordem natural das coisas. Baudrillard já dizia que toda revolução política implica uma revolução estética, algo que Divino Amor demonstra com humor, porém sem ridicularização. Existe respeito pelas crenças de Joana e Danilo, assim como pelo sofrimento de ambos na espera de uma criança.

Ao mesmo tempo, o projeto desperta a impressão de que as cenas se acumulam sem necessariamente sem desenvolver, ou talvez que elas se equivalham umas às outras. A apresentação do cartório, do Drive Thru e do culto “Divino Amor” possui grande interesse, mas perde seu impacto à medida que os espaços são repetidos, em momentos que aprofundam a psicologia dos personagens, porém não fazem avançar a narrativa. Como vivem os vizinhos de Joana e Danilo? Os pais deles? Os melhores amigos? De que maneira este modo de vida se reflete na política partidária, na mídia, nas atividades de lazer? Nunca sabemos ao certo. Os protagonistas são confinados a um único conflito – a completude através da procriação – sem que o caráter distópico se apresente por completo.

Este tem sido um traço curioso, uma marca autoral nos trabalhos de Mascaro como diretor de ficções: um imenso talento para o desenvolvimento de personagens tridimensionais, uma percepção aguçada dos espaços e questionamentos políticos, mas uma dificuldade em encaminhar estas figuras a um destino preciso uma vez que os elementos estão postos em jogo. Com frequência, personagens são abandonados e a história se suspende ao invés de se concluir – como se a criação de um mundo fascinante constituísse o objetivo em si, sem a necessidade de colocá-lo em prática, testá-lo e conhecer os seus limites.

Talvez por isso a narração em off, com uma voz infantil de tom estranhamento robótico, soe tão despropositada: apesar de estarmos numa espécie de ficção futurista, a voz se limita a repetir o conteúdo imagético ou reforçar a retórica religiosa dos diálogos. Ela se justifica narrativamente rumo ao final, porém soa como mero artifício de roteiro ao longo da projeção. Seria muito interessante ver nossos protagonistas confrontados a outras situações que pudessem expandir o sentido de sua busca espiritual. Ainda que a repetição do circuito trabalho-culto-casa se justifique pela representação de uma rotina alienada, ela impede que o filme adquira maior relevo. Abre-se diante dos nossos olhos um mundo de infinitas possibilidades cinematográficas, mas apenas uma parte muito específica delas é explorada no filme.

Isso não impede que Divino Amor forneça uma dúzia de cenas memoráveis como as bem dirigidas cenas de sexo dentro do culto ou o tratamento de Danilo para a infertilidade. O elenco comprova o talento de Mascaro para o trabalho com atores. Dira Paes está excelente numa personagem que poderia se transformar em caricatura nas mãos de uma intérprete menos qualificada, enquanto Júlio Machado, desde Joaquim e A Sombra do Pai, se transformou numa figura confiável para complexos personagens taciturnos. Thalita Carauta reforça a ideia de que, desde O Lobo Atrás da Porta, é a escolha ideal para instantes cômicos que exijam grande talento para diálogos.

O projeto se encerra como um curioso pesadelo travestido de sonho, uma cautionary tale cujo tom rosado esconde um subtexto trágico. Estas são possivelmente as obras políticas mais relevantes no Brasil de hoje: aquelas que ao invés de nos dizerem o que pensar, quem adorar ou quem detestar, despertam uma sensação de desconforto, de que existe por aí um horror travestido de simpatia, uma violência disfarçada de superação. Joana, com suas roupas impecáveis, frases articuladas e moral intacta, se transforma no modelo de um terror ainda mais perverso porque nunca se assume como tal.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.