Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Mogli - Entre Dois Mundos

A natureza sangrenta

por Bruno Carmelo

A estreia de Andy Serkis como diretor de animações gerava grande expectativa. O ator se tornou um dos maiores especialistas em técnicas de atuação para animações computadorizadas, criando os gestos e a voz de Gollum (O Senhor dos Anéis), Kong (King Kong), César (Planeta dos Macacos) e Snoke (Star Wars). A escolha do material, no entanto, surpreendia. Por que Mogli? O personagem ganhou uma versão realista pela Disney apenas dois anos atrás, com ótimo resultado tanto técnico quanto narrativo. O que Serkis poderia trazer de novidade ao menino lobo?

Embora a narrativa de Mogli - Entre Dois Mundos siga as linhas gerais da fábula, o tom sofre uma mudança significativa. Esqueça a aventura familiar, as piadas, as canções divertidas. Não há humor aqui. Baloo se tornou um urso grisalho, de pele enrugada, aplicando um ensinamento severo e violento. Bagheera ajuda Mogli, mas é capaz de matá-lo para provar seu ideal de sociedade, e Kaa hesita entre proteger a criança e atacá-la. Os personagens queridos da história infantil são transformados em seres de moral ambígua, com cicatrizes no corpo e traumas no passado, travando lutas mortais uns com os outros. O projeto traz um olhar inesperadamente sombrio à trajetória do garoto.

Em termos técnicos, é visível o esforço para tornar os animais o mais realista possíveis, com um trabalho de construção de pêlos, movimentos e luzes que se tornou viável apenas nos últimos anos. Ironicamente, quanto mais uma técnica de animação de aproxima do fotorrealismo, mais as pequenas falhas saltam aos olhos: alguns personagens ainda possuem o olhar vidrado, inerte (Shere Khan em particular), e o trabalho de iluminação deixa a pele de Kaa brilhosa como um plástico. Estes seriam detalhes ínfimos na maioria das produções, no entanto, chamam a atenção pela escolha ostensiva de reduzir o decalque em relação ao real.

Pode-se questionar os motivos que levam uma animação a querer imitar perfeitamente o mundo. A busca é utópica, mas não deixa de seduzir pelo desafio criativo e tecnológico. No entanto, quando as fantasias se desprendem da obrigatoriedade de parecerem realistas, elas estabelecem outro tipo de contrato de crença com o espectador. Um personagem como Wall-E soa muito mais comovente e expressivo do que algumas das feras de Entre Dois Mundos, por exemplo, porque a Pixar se dedica à representação do sentimento (através de som, luz, montagem, roteiro) ao invés da cópia do sentimento. Serkis está mais interessado em reproduzir do que representar e, neste aspecto, sai em desvantagem em relação ao mundo sensível. Animações mais fantasistas não carregam tamanha pressão.

Além disso, durante metade da narrativa, Mogli é um coadjuvante de sua própria história, contada pelo ponto de vista de terceiros. Baloo, Shere Khan, Bagheera, Akela e Kaa opinam incessantemente sobre os cuidados para com o menino lobo, mas a criança tem pouco a dizer. Quando ele enfim trava contato com os humanos, na metade final, o filme passa a enxergá-lo como protagonista, conferindo ao garoto uma identidade - ele é indiano, rapidamente introduzido nos rituais e na cultura local - e uma força próprias. É nesta parte que o filme deslancha, encontrando sua criatividade e transmitindo uma mensagem única, no caso, sobre a selvageria presente em todos nós, humanos e selvagens. Depois de tantas animações que pregam a tolerância e o perdão no que diz respeito aos inimigos, Mogli - Entre Dois Mundos retoma a lei do “olho por olho, dente por dente” numa valorização exacerbada da vingança com as próprias mãos.

Qual seria o público, afinal, da nova animação? Serkis retira da história a inocência, deixando os valores familiares e a autoaceitação em segundo plano para falar sobre a lei do mais forte e a necessidade de se impor através da guerra. Assim, o filme soa pouco apropriado aos pequenos - a classificação etária é de 12 anos de idade - mas também familiar e formulaico demais aos adultos. O cineasta busca uma fatia imprecisa do público, capaz de aceitar um herói infantil guerreiro e violento, combinando o instinto mais bárbaro das feras e dos humanos.