Críticas AdoroCinema
5,0
Obra-prima
Ela

Amores reais em tempos virtuais

por Bruno Carmelo

O drama Ela parte da história curiosa de um homem que se apaixona por uma máquina. Este mote foi amplamente discutido, defendido por alguns e ridicularizado por outros, desde que o diretor e roteirista Spike Jonze anunciou o projeto à imprensa. Felizmente, o filme não se esgota nesta ideia criativa. Ele retrata as novas configurações do amor de maneira geral, e consegue transformar o relacionamento entre o escritor Theodore (Joaquin Phoenix) e o sistema operacional Samantha (Scarlett Johansson) em um dos mais belos romances que o cinema construiu no século XXI.

Fala-se muito sobre diretores que não julgam os defeitos de seus personagens, mas Spike Jonze vai além. Ele não apenas observa o seu protagonista com um olhar afetuoso, mas também o coloca em praticamente todos os conflitos afetivos, éticos e morais que uma história de amor deste tipo poderia suscitar. O roteiro magnífico explora o ciúme, a possessão, o sexo, a distância e a noção de pertencimento nos amores contemporâneos, sem jamais parecer um filme-tese. Pelo contrário, com seu clima fluido, imagens de baixo contraste e trilha sonora agridoce, a narrativa constrói uma viagem linear, agradável e hilária em diversos momentos, sem a necessidade de reviravoltas abruptas para despertar o interesse do espectador.

Ela funciona como uma ficção científica, usando os fantasmas humanos sobre a tecnologia para questionar o presente. O “futuro” desta produção é bastante curioso, já que as cores e os figurinos evocam os anos 1960-1970, enquanto os espaços fazem o possível para não remeter a cidade alguma: os cenários misturam uma quantidade enorme de pessoas asiáticas a caucasianas, com arranha-céus que poderiam pertencer a qualquer país. Esse futuro do pretérito é um mundo anônimo, despersonalizado, fruto da globalização que deixa todas as pessoas e lugares com uma aparência semelhante.

Portanto, nada de fetichismos com carros que voam ou conquistas interestelares. O futuro imaginado por Jonze é triste, individualista, melancólico, onde a tecnologia fornece apenas meios de encontrar o amor pela Internet, fazer sexo virtual, pagar para terceiros escreverem cartas pessoais, divertir-se sozinho com videogames realistas. O diretor não aposta no tradicional conflito entre humanos e máquinas (nada de Robocop, portanto), e sim numa fusão tão completa entre os dois que não se consegue mais imaginar uma interação humana sem a intermediação de um sistema virtual. Deste modo, Theodore namora um sistema operacional, sua vizinha, Amy (Amy Adams), trava uma amizade com outro sistema operacional, seu chefe Paul (Chris Pratt) está feliz com a namorada, mas sonha em ser amado como nas palavras inventadas por Theodore. Para os personagens, o virtual é visto como um ideal a alcançar, um modelo de perfeição para o real.

Enquanto isso, o diretor parece se identificar com os personagens de Amy e Paul, observando os conflitos de Theodore com empatia, mas sem condescendência. Já Catherine (Rooney Mara), a ex-esposa do protagonista, surge como uma pessoal cerebral e fria – uma universitária presa ao mundo teórico – e portanto incapaz de sentir e de amar. Os verdadeiros apaixonados, neste filme, são sonhadores que se entregam sem freios ao amor, onde quer que ele apareça. “O amor é uma forma de insanidade socialmente aceitável”, diz a amiga e profeta Amy. “A vida é curta, e todos merecemos um pouco de felicidade”, ela completa. A lógica do aqui e agora, da instantaneidade, permeia esta doce pós-modernidade.

As atuações correspondem ao teor suave de toda a experiência: Joaquin Phoenix faz de Theodore um homem inteligente, certamente solitário, mas longe da imagem deprimente do “loser” típico dos filmes independentes. Ele é, acima de tudo, um homem qualquer, com quem todos poderiam se identificar. Já Samantha, o sistema operacional, é vivida com intensidade por Scarlett Johansson, lembrando que a voz é uma parte indispensável da atuação (uma versão dublada de Ela destruiria o filme), e que um personagem complexo e interessante pode ser criado sem nenhuma corporeidade além da tela de um smartphone. Johansson permite que Samantha evolua aos poucos, torne-se cada vez mais humana, mais concreta e palpável, mas sem o sonho fantástico de um dia se tornar real.

Por fim, quando o espectador tem certeza de que esta será apenas uma linda história de amor que celebra as paixões virtuais e defende a inclusão cada vez maior de máquinas em nossas vidas (impressão que pode surgir após a melancólica canção The Moon Song, interpretada em dueto pelos protagonistas), Spike Jonze reserva um final surpreendente, amargo e extremamente inteligente. Não, este filme não é uma ingênua celebração da tecnologia, e sim uma reflexão profunda sobre todos os aspectos que ligam os homens à máquina, e à projeção que fazemos dos nossos amores na invisibilidade do meio virtual.