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    Encantados: Noite de pré-estreia na Ilha de Marajó teve romeiros de bicicleta e festa da mucura assada

    Diretora Tizuka Yamasaki conta como foi envolvida pelo mundo místico dos caruanas. “Ficou muito patente de como há preconceito sobre o assunto”, disse sobre o filme rodado em 2009, que chega aos cinemas do Pará na próxima quinta.

    Karen Gobbatto

    Os quase 25 mil habitantes de Soure, maior município da Ilha de Marajó, não tinham do que reclamar na noite de sábado, 18 de novembro. Enquanto romeiros acompanhavam de bicicleta a tradicional programação do Círio de Nossa Senhora de Nazaré - a quermesse tinha até barca viking de Jack Sparrow -, a praça do Trapiche era convertida em cinema para receber cerca de 1500 pessoas para a pré-estreia de Encantados. E, para quem sobrasse fôlego, a aparelhagem comia solta no Curral do Búfalo para a 13ª Festa da Mucura Assada.

    No meio desse pitiú, é inegável: o Pará está na moda. E o (re)descobrimento recente pelo “sul” desta rica cultura local explica o lançamento do filme da diretora Tizuka Yamasaki (de Gaijin - Caminhos da Liberdade e Lua de Cristal) - que chega aos cinemas do estado no próximo dia 7 de dezembro (e no restante do país no primeiro trimestre de 2018) - agora. Uma produção que teve suas filmagens realizadas em 2009.

    Fabiula Bueno

    “Hoje, eu vejo claramente que esse era o tempo para lançar o filme. Quando você trabalha com entidades, você tem que ir no tempo delas, e não no tempo da produção, distribuição, entendeu?”, confessa uma serena Tizuka, em entrevista ao AdoroCinema na maior ilha do Pará.

    As entidades a que a cineasta se refere são os próprios caruanas, também conhecidos como “encantados”, que batizam seu novo longa. “Os Caruanas ou Encantados são as energias viventes nas águas. Estes Entes Encantados possuem missões que só podem ser cumpridas através de um Pajé”, resume um texto publicado no site do Instituto Caruanas - organização não governamental que contempla uma escola onde as salas são suspensas para não agredirem o solo -, chefiado pela pajé Zeneida Lima.

    Karen Gobbatto

    Tema de escola de samba (autora do livro “O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de Sua Ave” que rendeu à Beija-Flor de Nilópolis o título de campeã do Carnaval 1998 do Rio de Janeiro), Zeneida, agora, é filme.

    Em Encantados, que acompanha uma parte da infância da pajé e seu desabrochar para as práticas religiosas indígenas, ela é interpretada por uma Carolina Oliveira de 14 aninhos. O filme credita a atriz revelada em Hoje É Dia de Maria como “apresentando”, afinal, lá se vai quase uma década desde que a menina pisou pela primeira vez num set de cinema.

    Atrevida e sensitiva, Zeneida (pelo menos a da ficção) se apaixona por um caruana (Thiago Martins), ao mesmo tempo em que é tragada para a floresta por entidades. O pai (José Mayer), um influente político local, acha que a garota enlouqueceu. Enquanto a mãe, Zezé (Letícia Sabatella), e a empregada Cotinha (Dira Paes) se dividem sobre o que fazer com a pequena Zeneida - rondada pelo pajé Mundinho (Ângelo Antônio).

    Karen Gobbatto

    Nem a temática popular, nem a penca de rostos conhecidos da TV (incluindo, aí, Cássia Kiss MagroLaura Cardoso em participações menores do que a menor perereca da Amazônia) facilitaram a trajetória do filme.

    “Quem quer investir num filme sobre uma pajé?”, desabafa Tizuka. “Eu passei um ano tentando [investimento], com o projeto na mesa dos marketeiros e não acontecia nada. Então a gente mudou [a abordagem]: em vez de falar que é um filme sobre a Pajé Zeneida Lima, medalhista, poetisa e educadora, a gente trocou para um filme sobre a compositora Zeneida Lima, ambientalista e etc. e o ‘pajé’ só no final”.

    Exibido pela primeira vez em 2014 nos festivais do Rio e de São Paulo (deste saiu com o Prêmio da Juventude), Encantados desfez o contrato que tinha com um distribuidor desde então, e foi assumido pela RioFilme, sob nova direção. A produção vai chegar ao circuito comercial com meia hora de corte, totalizando 78 minutos.

    Karen Gobbatto

    “Ficou muito patente de como há preconceito sobre o assunto”, explica Tizuka. Um preconceito do qual nem ela mesma se exime. Eliana, umas das dez filhas da pajé, já havia entrado em contato com Yamasaki há anos, no intuito de transpor a história da mãe para a tela grande. “Eu olhei o livro e logo pensei: ‘Ih, essa coisa de pajelança…”, ri ao recordar.

    Depois da vitória da Beija-Flor - e de uma chuva ininterrupta de 11 horas no Rio que assolou a casa da realizadora -, foi que ela deu atenção ao livro, por sugestão do ator Anderson Muller (que vive um capataz no longa).

    “Eu li o livro e fiquei encantada. Liguei para a [roteirista Maria] Sena e falei que ia mandar o livro de uma mulher maravilhosa. Olha, ela me xingou tanto, porque ela estava há anos tentando fazer com que eu lesse o livro”, se diverte.

    “Eu falei: bom, vou dar um banho nela e num instante ela vai pegar no livro”, relembra Zeneida.

    Divulgação

    Para aqueles familiares com o livro, no entanto, Tizuka alerta: “eles não vão encontrar as cenas propriamente ditas”. Orçado em R$ 10 milhões, ela diz que conseguiu “fechar” em R$ 6,5 milhões. Os seres que arrastam Zeneida para a floresta, por exemplo, originalmente, são descritos como entidades enormes, azuladas e de pele escamada. Já no longa, o “ataque” é abordado de um ponto de vista subjetivo. “Isso foi antes de Avatar, viu?”, brinca a cineasta.

    Por ser do sul - e de ascendência japonesa! -, Yamasaki faz questão de dizer que teve um cuidado redobrado “para não falar besteira” (Zeneida prestou trabalho de consultoria para as cenas de Ângelo Antônio como pajé) e, nesse sentido, “fiquei alerta aos sinais da natureza”. Bastou ela pronunciar a palavra “natureza”, na coletiva de imprensa realizada embaixo da mangueira no quintal de Dona Zeneida, e uma borboleta azul entrou na roda como que para legitimar a fala da diretora.

    Karen Gobbatto

    “Eu era muito prepotente, sabe? Cineasta tem um pouco disso, acha que é o dono do mundo. Eu tinha um pouco dessa arrogância”, ela lembra. “Mas eu acho que o filme me fez ficar de joelhos e falar: 'Tizuka, para o teu carro que não é por aí. Presta atenção nas coisas que você não entende, porque você é insignificante e, se não tiver respeito, você vai dançar'”.

    Não o mesmo tipo de dança, claro, dos que pagaram R$10,00 para entrar na Festa da Mucura Assada - com direito a show da banda Fruto Sensual. A mucura (“é tipo um gambá, um marsupial. Tem gosto de frango”, como o AdoroCinema apurou) servida no evento, aliás, era carne de búfalo. Piada interna do povo da região. Ufa.

    O AdoroCinema viajou a convite da produção de Encantados.

    Renato Hermsdorff

     

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