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    A Cor Púrpura
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    A Cor Púrpura

    Remake não supera filme de Steven Spielberg, apesar das atuações brilhantes

    por Nathalia Jesus

    Em 1985, Steven Spielberg ousou e se arriscou ao adaptar uma das obras literárias mais relevantes daquela década: A Cor Púrpura, da escritora, poeta e ativista feminista Alice Walker, lançado em 1982. A façanha o colocou entre um dos diretores mais badalados da época e, até hoje, tal honra o precede.

    Nos tempos atuais, vimos o best-seller virar assunto quente novamente (não que tenha desaparecido do nosso imaginário em algum momento). Na versão de 2023, adaptada do musical homônimo da Broadway, estamos à frente de um longa-metragem que se colocou entre a cruz e a espada com a possibilidade de ser eternamente comparado com dois trabalhos anteriores de grande relevância. E, por fim, não chega perto de nenhum deles.

    A nova adaptação de A Cor Púrpura acompanha Celie (Fantasia Barrino), uma mulher de coração puro que é abusada pelo pai, que a engravidou e a afastou de seus dois filhos. Não demora muito até que ela seja vendida para se tornar criada de Mister (interpretado brilhantemente pelo indicado ao Oscar, Colman Domingo). Sua conexão mais firme no mundo é com a irmã Nettie (vivida por Halle Bailey em sua fase adolescente e pela cantora Ciara na adulta) — que, após quase ter sido estuprada, é expulsa de casa e, com isso, elas perdem o contato.

    Warner Bros. Pictures

    A história é, inegavelmente, pesada, desde o livro até as adaptações. Neste novo filme, dirigido por Blitz Bazawule (Black Is King), o teor altamente dramático ainda está lá, mas é suavizado por números musicais e blocos que dividem cada momento da vida de Celie. Neste ponto, o longa-metragem abraça a musicalidade com pouca ousadia: quer parecer um musical, mas teme em se jogar na característica teatralidade, correndo o risco de parecer nada mais que um filme com música — que, inclusive, são ótimas!

    As cenas musicais são realmente encantadoras, filmadas com capricho e lideradas por grandes vozes que também viveram na pele das personagens pelos palcos da Broadway — incluindo a própria protagonista Fantasia Barrino, que atualmente está reprisando Celie no filme, e Danielle Brooks, intérprete de Sophia aqui e no revival do musical em 2015.

    Apesar do primor de tais sequências, no entanto, é incômodo como momentos conflituosos ou decisivos acabam sendo brutalmente quebrados pelos números musicais. A escolha compromete não somente o ritmo do filme, mas também dificulta a nossa conexão genuína com o que quer que as personagens estejam vivendo no dado momento — e considerando que o longa-metragem atravessa cerca de quarenta anos da vida de Celie, é até estranho que demoremos tanto a nos ligar a ela. E some isso à aparição de coadjuvantes de peso.

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    Amor e cumplicidade entre mulheres

    A personagem de Danielle Brooks é a primeira a desviar nossos olhos de Celie. Sophia é uma personagem forte, destemida, cuja existência é quase inacreditável naquele contexto. Por ter sido a única atriz nomeada ao Oscar 2024 pelo filme — que foi, de certa forma, esnobado na premiação —, é esperado que nosso olhar se direcione a ela quase como um desafio, uma genuína curiosidade em saber o que a levou à indicação de Melhor Atriz Coadjuvante. Não demora muito para entendermos o valor de sua performance prismática, que nos leva do céu ao inferno. Sophia tem suas trajetórias muito bem delineadas, com início, meio e fim, e Brooks soube aproveitar suas aparições para fazê-la brilhar ainda mais.

    Taraji P. Henson tem grande relevância na história em seu papel como Shug Avery, o primeiro amor romântico de Celie e a segunda conexão afetiva da protagonista — que vem depois apenas de sua irmã Nettie. A chegada de sua personagem nos traz certa esperança de que as coisas vão se ajeitar. Ao longo da trama, as figuras femininas que surgem na vida de Celie nos apresentam um conceito de sororidade muito longe de ser performativo — como o que vemos em tantos filmes ditos super feministas.

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    Celie, que por tanto tempo foi colocada em uma posição de servidão e inferioridade, é finalmente enxergada por quem ela realmente é graças à sua relação com as mulheres que surgem em sua vida. É então que ela deixa de ser guiada e encontra forças para ser dona de sua própria narrativa, para apoiar, depois de tanto ter sido apoiada por elas. A vida da protagonista ganha cor literalmente, evidenciado pelos números musicais que vão tirando o longa-metragem de tons terrosos e o insere em uma nova roupagem brilhosa e extravagante. É como se Celie estivesse sendo redesenhada, deixando de ser um rascunho esquecido.

    Nettie, que foi o fio condutor de sua história desde os primeiros minutos, é mais valorosa nas memórias de Celie — a aparição de Halle Bailey não faz nem cócegas. É esse ímpeto de ver a irmã novamente que a move em seus próximos anos de vida e escancara, mais uma vez, o quanto a força dos afetos femininos é a grande protagonista da trama, acima de todos os ciclos de violência aos quais Celie sobreviveu.

    Todo o restante é muito apressado

    A Cor Púrpura tem como problema central a diminuição da importância de momentos decisivos. O filme abrevia quase toda possível catarse: quando a protagonista é colocada em uma situação determinante para sua evolução como personagem, a cena é ofuscada pela música ou, simplesmente, por uma sequência que nos leva a um novo assunto. A sensação que fica é de que há algo incompleto.

    Essa falta de fluidez no enredo também atrapalha nossa experiência ao percebermos que não podemos acreditar tão solidamente naquelas pessoas. Um exemplo disso é o personagem de Colman Domingo, que nos entregou uma verdade absoluta sobre si mesmo durante todo o longa-metragem e, por fim, teve um arco de redenção relâmpago, pouco desenvolvido, perdendo toda a construção arduamente realizada ao longo do filme. Apesar disso, a representação do ator no papel de Mister foi visceral até onde o roteiro permitiu.

    O filme acaba se tornando refém de todas as referências que o torna reconhecível. É o livro, é a obra-prima de Steven Spielberg, é a aparição surpresa de Whoopi Goldberg — intérprete original de Celie Johnson no longa-metragem de 1985 —, é a presença de Oprah Winfrey na produção e, obviamente, a peça da Broadway. A nova versão de A Cor Púrpura não tem muito o que chamar de “seu”, embora seu brilhante elenco tenha feito o possível.

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