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    Albatroz
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Albatroz

    A matéria dos sonhos

    por Bruno Carmelo

    Uma produção como Albatroz constitui um acontecimento raro, e muito bem-vindo nos cinemas brasileiros. Enquanto os filmes nacionais lutam por visibilidade diante de um público cada vez mais avesso aos projetos artísticos do próprio país, abre-se um fosso entre as produções populares (sequências de comédias de sucesso, biografias de artistas famosos) e outras, radicais, ousadas, contrárias às fórmulas. Albatroz se encaixa nesta última categoria. Ele constitui um objeto ainda mais exótico por ter sido financiado por produtoras acostumadas aos principais blockbusters nacionais, o que lhe permite ter atores famosos e um orçamento considerável. Em outras palavras, trata-se de um antiblockbuster com estrutura de blockbuster.

    O enredo não se desvenda com facilidade, podendo soar confuso, difuso, polissêmico demais - o que neste caso, constitui um elogio. O suspense se constrói como um labirinto no qual a saída interessa pouco: vale mais o prazer de se perder. A narrativa salta entre tempos distintos, mistura as personagens, sugere dezenas de estímulos que podem ser fictícios ou reais, dependendo do ponto de vista. Simão (Alexandre Nero) pode realmente estar sendo perseguido, talvez viva um grande sonho, ou ainda somatize a culpa por ter tirado uma foto controversa, que encerrou prematuramente sua carreira. “Chega de realidade, seja lá o que isso for”, afirma um personagem em determinada altura da trama, resumindo a premissa.

    O roteirista Bráulio Mantovani - ele também, autor de alguns dos maiores sucessos nacionais como Tropa de EliteCidade de Deus - e o diretor Daniel Augusto - da biografia Não Pare na Pista - jogam às favas a obrigação de conduzir os personagens do ponto A ao ponto B, explicando ao espectador todos os símbolos e costurando os fios soltos. Eles abandonam a pressuposição de nos conduzir a um desfecho preciso, de criar uma jornada rumo à recompensa narrativa e emocional prometida. Nosso protagonista anda em círculos, e talvez a conclusão de seu percurso seja o início. Talvez ele sequer tenha se movido. Para quem deseja esclarecimentos, Albatroz chega para confundir.

    Isso vale para o significado do título, que se associa a quase tudo, menos ao pássaro. "Albatroz" é um livro, um bar, um hotel, uma cidade (real? imaginária?). A narrativa salta do terrorismo entre judeus ortodoxos ao protozoário Toxoplasma Gondii como quem conta um dia banal, como se tudo estivesse relacionado, fazendo parte de um mesmo universo e sentidos. Esta espécie de cosmogonia das imagens mistura o cinema como a fotografia, o teatro, a literatura, a música; tinge as imagens de vermelho, azul, amarelo, até passar ao preto e branco. Cria-se uma coesão pelo dispositivo da metamorfose constante: sabemos que a próxima cena não será uma consequência lógica da anterior, nem terá o mesmo estilo.

    Somos bombardeados por estímulos aparentemente aleatórios, que embora não se conectem num sentido narrativo clássico (eles não “contam uma história” com começo, meio e fim), associam-se pela vontade de questionar os limites representativos de uma imagem, seu valor como documento, e nossa crença, enquanto espectadores, naquilo que é mostrado. Se vemos um personagem ser morto diante dos nossos olhos e, na cena seguinte, ele aparece vivo, em quem devemos acreditar? Se o cinema organiza um sistema de crença, estabelecendo um pacto com o espectador, o que fazer quando o jogo trapaceia e muda as suas próprias regras?

    A paranoia de Simão também é a nossa: estamos perdidos, tentando aplicar lógica a algo que não pretende ser, em momento algum, totalmente lógico. É como tentar descobrir imagens de animais nas nuvens, que nunca foram organizadas desta maneira, e jamais tiveram este propósito. Nossa confusão diante de uma estrutura desconexa como a de Albatroz diz muito sobre uma percepção domesticada, de certo modo preguiçosa e passiva, dos tempos contemporâneos. A tentativa de enxergar um sentido imediato na teia semântica do filme proporciona uma frustração, que talvez constitua o real objeto do filme. Não por acaso, uma neurocientista explica que a diferença entre a percepção e a alucinação é muito pequena - em outras palavras, as noções de verdadeiro e falso, de real e fictício, talvez não sejam opostas, e sim vizinhas.

    Enquanto o fotógrafo perambula pelo universo recheado de ícones do suspense - bares com belas cantoras sensuais, a amante louca com uma arma, a esposa gentil e doméstica, a cientista com experiências eróticas - ele se sente cada vez menos em controle daquelas imagens distantes. Simão é dominado por seus fetiches, ao invés de dominá-los. Mesmo a ação de matar alguém (numa alegoria entre o “disparar” da câmera fotográfica e o disparo de uma arma) ocorre pelo estímulo das mulheres ao redor. “Não acorda!”, grita outra personagem, no que constitui o movimento oposto ao do pesadelo: ao invés de despertar Simão, o projeto o imerge progressivamente nos abismos do subconsciente.

    Aos atores, resta o prazer evidente de trabalhar na contramão do classicismo, flertando com o cinema de gênero, com as produções B e mesmo com o trash, o exploitation - vide os figurinos de Andréa Beltrão e Andreia Horta. O diretor sabe conduzir cenas elegantes, brincar com vários registros de imagem, mas também não se priva de produzir ruídos que chamem atenção à artificialidade do conjunto, ao fato de que estamos observando uma representação de pessoas, ao invés de pessoas em si. “Isto não é um cachimbo”, diria a obra máxima sobre a representatividade nas artes, ou ainda “isto não é a realidade”, como insiste o roteiro.

    Albatroz sublinha ao espectador o fato de estar assistindo a uma encenação, diante de atores, com a presença de câmeras, com cortes abruptos e um roteiro que utiliza falas literárias. A cada momento em que nos aproximamos da imersão na trama, o filme nos expulsa novamente. A cada teoria que possamos elaborar sobre os caminhos de Simão, Catarina, Alícia e Renée, uma guinada sugere que não compreendemos nada. Mais do que uma brincadeira junto ao espectador, o resultado é um enigma: “Decifra-me ou devoro-te”. Que se participe ou não, é com prazer que tamanha afronta aos sentidos ganha as telas dos nossos cinemas. Precisamos de mais albatrozes para equilibrar a nossa produção cinematográfica.

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