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    A Grande Aposta
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    A Grande Aposta

    Tudo pelo lucro

    por Francisco Russo

    Às vezes, a realidade é tão absurda que o melhor meio de retratá-la seja através do deboche. Martin Scorsese sabe bem disto, tanto que usou e abusou desta técnica ao contar a história de Jordan Belfort em O Lobo de Wall Street. O diretor Adam McKay, veterano da comédia que traz no currículo O Âncora - A Lenda de Ron Burgundy e Ricky Bobby - A Toda Velocidade, bebe da mesma fonte ao investir em um longa-metragem de fundo dramático - e baseado em fatos reais - sobre a complexa crise imobiliária ocorrida nos Estados Unidos em 2008. Só que, ao invés de se render ao didatismo técnico inerente ao tema, McKay demonstra imensa habilidade ao transformar a sopa de letrinhas do mercado imobiliário em um verdadeiro turbilhão de referências (e críticas) à cultura pop e ao american way of life, como poucas vezes se viu no cinema americano nas últimas décadas.

    Baseado no livro escrito por Michael Lewis, o longa-metragem inicia alguns meses antes da crise eclodir. O foco está em quatro grupos de investidores, cada um com suas peculiaridades mas com um objetivo em comum: lucrar (muito!) a partir da destruição do sistema. Tal contrasenso moral é a crítica básica do longa-metragem, apontada diretamente para o capitalismo: se o que importa é lucrar a todo custo, por que não apostar na perda de empregos e na piora de condições de vida da classe mais baixa da sociedade?

    É importante ressaltar que, por mais que haja um investimento pesado na tragédia, esta não é provocada pelos "heróis" da trama. O grande mérito da trupe foi saber lidar com a informação, quase imperceptível, de que o sistema estava se tornando insustentável - o que, por outro lado, também não os isenta de torcer descaradamente para que o pior aconteça. Este conflito de consciência até é apresentado através dos personagens de Steve Carell e Brad Pitt, que em certos momentos lembram das consequências do que está por vir. Ainda assim, isto jamais se torna maior que a busca pelo lucro incessante. No fim das contas, serve mais como um lembrete ao espectador do que está em jogo naquele momento.

    Questões morais à parte, este filme-coral divide seus 131 minutos ao longo de quatro núcleos base, protagonizados por Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling e Brad Pitt. Por mais que alguns até se encontrem em raros momentos, a função maior do quarteto é apresentar variações em torno da bolha prestes a explodir. Quem mais aparece em cena é Carell, dono também da melhor atuação. Seu semblante sempre cansado, como se permanentemente carregasse o mundo em suas costas, é a síntese precisa do estado emocional do personagem e do quão absurdo ele vê tudo o que acontece ao seu redor. Christian Bale também brilha, especialmente no início, quando o espectador é surpreendido pelos cacoetes de seu personagem desajustado socialmente.

    Entretanto, é a partir do personagem de Ryan Gosling que A Grande Aposta encontra seu tom. Tão arrogante e autoconfiante quanto o Jordan Belfort de Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street, ele volta e meia quebra a quarta parede para falar com o público e não tem o menor pudor em buscar, a todo custo, benefícios para si próprio. A ganância desmedida ganha proporções cada vez maiores, impulsionada também pelas denúncias de manipulação e fraude de todo o sistema econômico norte-americano - quem pôde ver o documentário Trabalho Interno, premiado com o Oscar, conhece bem o assunto.

    O grande pulo do gato de A Grande Aposta é que, à medida que a situação como um todo cresce, Adam McKay passa a investir mais - e mais - em piadas e gags particulares, extremamente debochadas. Muitas delas são hilárias, como as participações especiais de celebridades para explicar algum termo técnico demais que surge durante a trama - a de Margot Robbie é sensacional! É neste ponto que a verve cômica do diretor vem à tona, usando o sarcasmo não apenas para ajudar a própria narrativa, mas também para cutucar o próprio modelo retratado. Não é à toa que, já na reta final, McKay espalha o sutil som de risadas em determinadas cenas, como se o próprio contexto risse da armadilha criada para o cidadão comum - e, por que não?, para o próprio espectador.

    Contundente e incisivo, A Grande Aposta é um grande filme que tão bem retrata o modo de pensar do capitalismo selvagem. Ao mesmo tempo, é uma roda-gigante de citações pop nos sentidos mais diversos, muitas vezes usadas como mero deboche, até mesmo às próprias citações. Com uma edição ágil e diálogos primorosos, responsáveis por vários momentos antológicos, o longa conta ainda com um elenco afinado conduzido com precisão por alguém que sabe muito bem não só o que está tratando, mas também como abordá-lo - e, neste caso específico, isto faz toda a diferença. Belíssimo trabalho de Adam McKay, tanto no roteiro quanto na direção, que o credencia - com justiça - ao próximo Oscar.

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    Comentários

    • André Pereira
      EM TEMPO DE COVID ME CHAMOU A ATENÇÃO A FRASE DO PERSONAGEM DO BRAD PITT----------A CADA 1% DE DESEMPREGO GERA 40 MIL MORTES.FILMAÇO
    • Vitor Silva II
      O sistema capitalista jamais será perfeito, MAS ele é o ÚNICO que, quando colocado em funcionamento, mostrou ser o mais estável... ou melhor, o único que funciona.
    • Ruy Domingues
      Filme fantástico. Conta a história real de alguns investidores que previram a crise hipotecária de 2008, mas, mais do que isso, expõe o funcionamento real e fraudulento do sistema financeiro mundial. Alguns desavisados podem achar que a imagem ''pintada'' dos bancos no filme é somente um recurso de dramaturgia, para estipularmos mocinhos ou vilões. Mas a realidade é exatamente esta: bancos são fraudulentos e, quando sua fraude entra em colapso, repassam o ônus para a população ao recorrerem ao Estado que os salvam com dinheiro oriundo de impostos. Não considero o filme como uma critíca ao Capitalismo, mas à este Capitalismo que hoje impera: sem lastro, oligopolizado por poucas instituições financeiras, fraudulento e simbiótico com o governo.
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