Há filmes de vários gêneros: drama, comédia, romance, animação, terror, etc. Existem, mais que isso, filmes bons e ruins, em uma escala variável entre maravilhosos e péssimos, em cujo meio estão os filmes comuns, os blockbusters, em safras cada vez maiores. Há, ainda, filmes que por motivos distintos, positivos ou negativos, tornam-se eternos. Bruno Barreto, diretor brasileiro, resolveu contar uma história ousada, e que poderia ser alvo de críticas impiedosas unicamente por tocar em um assunto delicado em uma sociedade ainda tão preconceituosa e tacanha: a homossexualidade feminina. Barreto poderia ter feito uma narrativa de amor lésbico para atingir um público específico, ou poderia tratar com diferença e estranheza a história de um casal célebre, evidenciando os motivos pelos quais as duas mulheres se distinguiam de tantos outros casais mais tradicionais. Mas o diretor preferiu conferir naturalidade ao que, de fato, não merecia outro tratamento: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop chega às telas revisitada, sob um olhar tão sensível e delicado que é capaz de emocionar o mais cético ou preconceituoso dos espectadores. Vejamos os motivos.
Década de 1950, Rio de Janeiro, Brasil: duas mulheres se conhecem, como mulher e mulher, em uma situação incômoda e pouco provável. Juntas, enfim, vivem com naturalidade a relação que projetam como quem ergue uma construção – como a arquiteta Lota – ou como quem enxuta as palavras em busca de versos precisos – como a poetisa (ou poeta) Elizabeth: elas têm minúcia, bom gosto e objetividade em cada tijolo que depositam na obra final. No filme, Lota é interpretada pela majestosa Glória Pires, e Bishop ganha o rosto de Miranda Otto, atriz australiana de primeira grandeza. Donas de personalidades aparentemente distintas e absolutamente complementares, ao longo da sequência, as características de uma e outra vão se misturando, e por vezes até se alternando, mostrando como a evolução do tempo em uma relação afetiva é capaz de alterar o mais sólido caráter. A força, a fraqueza, a firmeza, a maleabilidade, o carinho, o desprezo, a humilhação e o perdão – a traição, a reconciliação, os vícios e as virtudes – são alguns dos temas tratados. Sim, temas, porque não são apenas elementos. Vários desses são discutidos com profundidade suficiente para um filme que se pretende mais popular que restritivo. Evidentemente, há diálogos que poderiam ser mais bem construídos, mais longos, mais emocionados; mas, para o que pretende, o longa de Barreto é impecável e arrebatador.
Grande mérito para a universalidade que o filme atinge: muitos se sentirão representados. Facilmente um casal, seja ele de que orientação (sexual, etária, etc) for, poderá ver suas mazelas e conquistas impressas na tela. O amor de Lota e Elizabeth tem a silhueta específica das duas, mas projetam a sombra da generalidade de qualquer relacionamento que nasce entre duas partes que se desejam profundamente e que buscam se entender e estar unidas, mesmo que com obstáculos a saltar. As dificuldades são comuns a todos os enlaces afetivos, e o sucesso nem sempre é garantido – a tentativa de prosperar, porém, é o que interessa no recorte de “Flores Raras”. O fracasso, também. Bem como o ato de “perder”, que é revisitado e ressignificado, oscilando entre causa e solução dos problemas do casal.
Elementos visuais são delicadezas com que o espectador é brindado: desde o vestuário, ao mobiliário, às tomadas externas em um Rio de Janeiro antigo e tão diferente do que hoje se conhece. Mas o grande trunfo da produção está nas interpretações de Glória e Miranda. Impossível ficar distante ou insensível aos dramas das duas mulheres, tão fortes, mas tão desprotegidas. Bem como difícil é se manter apático às comoventes cenas de carinho, desejo e cumplicidade que acompanham o passar dos anos das protagonistas. Aplausos para a desenvoltura de Glória Pires no uso do inglês, nas cenas mais íntimas (e novas para a atriz) e nos trejeitos que mostram que ela está em sua melhor fase profissional. Reverências aos olhares significativos (que evoluíram com a trama) de Miranda Otto, mostrando um interior que a personagem não conseguiria expressar de outra forma, nem mesmo em seus versos. Se Glória atingiu uma capacidade impressionante de se transformar de acordo com que o papel lhe pede, Miranda mostra a grandiosidade que é trazer verdade à personagem – ela vive a angústia, a alegria, o medo e a tristeza com toda a verdade que é possível. A brasileira constrói uma Lota irreverente e admirável, a australiana proporciona que Elizabeth Bishop ganhe voz mais uma vez, para além do tempo em que se fez “ouvir” por meio de seus versos.
Ambas conquistaram êxito na “vida real”: Lota construiu seu parque, no Aterro do Flamengo; Elizabeth venceu o prêmio Pulitzer de poesia. Elas conseguiram, mais que isso, escrever juntas uma história verdadeira – venceram preconceitos e os desafios de enfrentarem a si mesmas. Das diferenças profissionais, de posições políticas e até mesmo de escolhas familiares, às semelhanças que encontraram na convivência, o amor de Lota e Elizabeth foi eterno enquanto viveu – e por isso pode servir de inspiração para a belíssima obra cinematográfica de Bruno Barreto.
Se um dia o cinema nacional vibrou com “Central do Brasil”, que consagrou (com toda justiça) o talento de Fernanda Montenegro, não é cedo para dizer que “Flores Raras” atingiu um patamar de sensibilidade e qualidade semelhante. E não seria ingenuidade admitir que Glória Pires desponta a cada dia como a nova grande atriz do cinema brasileiro. Barreto consagra-se como diretor de sentidos apurados. E o cinema nacional ganha mais uma chance de respirar fundo e mostrar a que veio, para além das comédias prontas e dos aclamados favela-asfalto. “Flores Raras” certamente não atingirá as cifras de um “Tropa de Elite”, ou a fama do já citado “Central do Brasil”, por motivos óbvios (a resistência à temática; e o gênero dramático, menos apelativo/chamativo), mas entra para o seleto grupo de filmes deslumbrantes produzidos em nossa terra. Quanto orgulho!