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    Deus da Carnificina
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Deus da Carnificina

    O prazer do caos

    por Bruno Carmelo

    Quase toda a discussão que este filme suscitou nas mídias veio de seu evidente caráter teatral. Uns disseram que este filme não era "cinema de verdade", enquanto os defensores alegaram que o filme era ainda mais cinematográfico porque tinha o desafio da direção entre quatro paredes. Ora, criticar uma adaptação de peça teatral por ser teatral demais é como criticar uma comédia por ser engraçada. Na verdade, ater-se a esta questão implica perder o verdadeiro foco do filme.

    Sim, Deus da Carnificina é cinema; sim, ele é adaptado de uma peça de teatro. A confusão vem da escolha interessante do diretor Roman Polanski: ao mesmo tempo em que conserva toda a estrutura da peça (personagens confinados em uma casa, diálogos incessantes), ele faz o possível para controlar o ponto de vista do público, algo que só é possível no cinema. Os enquadramentos, compondo pares de personagens, colocando-os ora lado a lado, ora em profundidades de campo diferente, atestam essa vontade "cinematográfica".

    Mas passemos. Deus da Carnificina (que alívio que os distribuidores guardaram o título da peça, ao invés de chamá-lo de "Disputas do Amor" ou alguma besteira do tipo) segue o prazer simples da gradação. Nós sabemos, tanto pelo trailer quanto por todo o material publicitário, que o encontro entre os dois casais civilizados vai se degenerar, partindo para a "carnificina" do título. Não existe suspense neste filme que não trabalha a finalidade, mas os meios.

    O interesse encontra-se, portanto, na progressão certeira e inevitável rumo ao caos. Existe um belo trabalho de ritmo, tanto na montagem quanto no roteiro, para que os personagens se testem, se provoquem, soltem uma palavra mais forte, depois se desculpem, e depois se provoquem ainda mais... O grande mérito deste filme encontra-se no "como", e não no "porque". É ótimo ver os personagens se desenvolvendo aos poucos, deixando cair as máscaras, tanto para a mulher de esquerda, ideológica (Jodie Foster) quanto para o capitalista cínico, feroz e niilista (Christoph Waltz).

    Em uma estrutura que não larga seus personagens em momento algum, os atores são indispensáveis, e a escolha do elenco foi excelente neste caso. Se Christoph Waltz e Kate Winslet não têm mais nada a provar para ninguém, há muito tempo não se via Jodie Foster tão bem em cena, ou John C. Reilly em um papel que fugisse do homem passivo e pouco inteligente. Todos aqui trabalham com perfeição cada gesto, cada detalhe das roupas, dos trejeitos, dos tons de voz.

    A diversão do espectador encontra-se em sua posição cômoda diante da catástrofe alheia, que ele pode testemunhar como um voyeur, sem implicação. Se o filme faz críticas à burguesia, ele não pretende ser um tratado sobre a falência dos valores humanos, apenas um cutucão cômico e leve sobre as hipocrisias sociais. Quando as interações pegam fogo, e as bocas começam a despejar com a mesma intensidade insultos e vômito, resta o prazer de ver até onde a brincadeira pode ir.

    Em um mundo adulto tão condicionado por regras sociais, é uma delícia ver quatro pessoas perfeitamente educadas rebaixando-se e dizendo em voz alta aquilo que todos os outros pensam, mas não ousam falar. Um cinema-catarse e uma psicanálise da classe média-alta na medida certa para expiar as culpas e os desejos do espectador.

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