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    The Leftovers sai de cena simples, bela e devastadora (Crítica da terceira temporada)

    Você fez isso de novo, Damon Lindelof.

    Nota: 5,0 / 5,0

    The Leftovers tinha tudo para dar errado. A história daqueles que permanecem na Terra após o misterioso e repentino desaparecimento de 2% da população mundial. Parece trama de uma adaptação ruim de Stephen King. E, ainda assim, é — ou melhor, foi — um dos dramas mais atraentes da História.

    Embora a premissa seja a adaptação de uma obra literária (“Deixados Para Trás”, de Tom Perrota), o seu gosto pelo mistério é herança de Lost. Damon Lindelof é o fator (ou melhor, o showrunner) em comum entre ambas, e utilizando sua cartilha de David Lynch, usa a pergunta como plataforma de lançamento para explorar o psicológico daqueles personagens que estão ali presos. O que significa eles estarem ali naquele lugar? Como os eventos recentes influenciam a forma como se relacionam? E, o mais importante, como eles lidam com a perda e a eterna pergunta sem resposta ao redor dos amigos e parentes que desapareceram?

    A música de abertura da segunda temporada — que não por acaso retornou na series finale — fala exatamente da eterna pergunta sem resposta: “Todos perguntam de onde vieram [...] e para onde vão quando tudo acabar [...] Ninguém sabe ao certo então para mim dá na mesma. Acho que vou deixar o mistério apenas ser.”

    Um dos grandes desafios ao tentar mapear o quebra-cabeças de uma série tão complexa e emocionalmente dura como The Leftovers é balancear a análise técnica e o aspecto amplamente sensorial que traz à tona. As três temporadas são construídas como uma grande cebola, que aos poucos vão retirando as camadas de personalidade de cada um dos protagonistas para mostrar suas formas cruas, impiedosas e — de forma complementar — despedaçadas.

    É um contraponto, mas um dos mais bem pensados e sensíveis já vistos na televisão: em uma história que facilmente poderia se transformar em um mergulho investigativo nos porquês, na busca por respostas e numa interminável análise científica, em corredores brancos super iluminados e com homens de terno e gravata em enormes salas no alto de um prédio tentando desvendar para onde foram os 2% da Partida Repentina, The Leftovers opta justamente pelo oposto; o centro da trama é um delegado de uma pequena cidade do estado de Nova York, deprimido e com a família destruída. The Leftovers opta pelo caminho difícil ao criar uma grande e elaborada metáfora para tratar do mais universal dos assuntos: vida, morte, luto e todas as perguntas que nem mesmo Douglas Adams conseguiu responder.

    A jornada de Kevin Garvey (Justin Theroux) poderia ser a de qualquer um de nós, qualquer um que já tenha perdido um parente ou um amigo e sentido aquele imenso vazio que jamais será preenchido; ou que já tenha se perguntado se algum dia vai reencontrar aquela pessoa que se foi; ou, em verdade, qualquer pessoa que já tenha se feito alguma pergunta que se encaixe no âmbito metafísico. A trajetória deste personagem foi delicadamente se mostrando cada vez mais como uma grande busca que, no fim, não tinha o que encontrar — e inconscientemente, assim como nós, ele sabia disso. E mesmo assim continuou. Que outra opção haveria?

    Neste ponto, com suas analogias nada fáceis sobre as percepções da morte, The Leftovers é um dos maiores exemplos de como o lado filosófico e espiritual da existência pode ser retratado na ficção sem fazer distinção de valores ou julgamento por doutrinação. Um dos protagonistas da série é um homem religioso, e o tema e a figura divina são elementos fortes, mas não como respostas irredutíveis. As diversas formas de crença, ou fé (sejam os Remanescentes Culpados, o Reverendo Matt Jamison, a ideia de salvação dos moradores de Jarden, xamãs com abraços curadores ou máquinas que te levam para junto dos 2%) jamais são definidas como certas ou erradas, e aí está o grande segredo da série. É extasiante e carregada porque reprisa o que há de mais belo e frustrante (e lindamente catastrófico) a respeito da existência humana: ou você passa suas décadas buscando por uma resposta que vá satisfazer todas as suas dúvidas, ou entende que há mistérios que permanecerão intactos. E deixa o mistério ser.

    HBO/Reprodução

    A jornada da série durante suas três temporadas é uma montanha-russa, e entre todas as direções que assume, a mais arriscada é justamente a mais pé-no-chão. Isso porque o caminho mais difícil de percorrer na maioria das vezes é o da sutileza. Como tratar do cotidiano sem ser piegas? Felizmente, esta é uma tarefa que The Leftovers cumpre com maestria. Antes mesmo de começar, ela aprendeu com os ‘erros’ — ou melhor, com os questionáveis desvios de rota — de Lost, e assim carrega toda a sua carga dramática na fortaleza dos personagens e na percepção que eles têm do que é real. A nossa própria visão dos acontecimentos é tudo o que temos, no fim das contas.

    A terceira temporada especificamente fez de tudo. Matou personagens, mergulhou na busca de Kevin Garvey Sr. (Scott Glenn) por uma canção que iria impedir o dilúvio, foi para a Austrália, encontrou Deus em um cruzeiro de um grupo adorador de um leão e praticante de orgias, transformou Kevin no presidente com um irmão gêmeo que era seu assassino, e (o mais importante) deixou Nora Durst brilhar como merecia. Em uma atuação impiedosa, Carrie Coon dá tudo de si e despedaça o público com um olhar. Ao longo dos anos, a personagem cresceu e tomou o centro da história para si a cada hora, se transformou num elo de ligação entre todas as partes e na perfeita representação da dualidade de questionamentos que o luto deixa no ar. Entre seguir em frente com a sua vida após a partida dos filhos (e do marido) ou sentir-se eternamente machucada pelo vazio que jamais vai deixar de sentir, não há para ela realmente uma solução. Ambas são positivas e negativas, e quando a series finale responde (mas não responde) se Nora seguiu em frente com a máquina das cientistas, joga para o público os dois lados da balança: você pode escolher acreditar ou não que ela estava dizendo a verdade. Não vai fazer diferença, mesmo. O que importa é apenas uma coisa:

    “Estou aqui.”

    HBO/Reprodução

    A dicotomia da mensagem que o último episódio da série deixa no ar é uma das mais elegantes já vistas, e embora a esperança — ou o amor, a paz, como se quiser colocar — seja vista como uma conclusão piegas, não é exatamente em volta disso que nossas vidas giram? Não é justamente a ideia de que eventualmente tudo ficará bem o que nos faz seguir em frente?

    Um padrão, aliás, facilmente pode passar despercebido. Carrie Coon é a responsável pela última fala de todas as temporadas. A primeira temporada se encerra com um “olha o que eu encontrei”, quando Kevin e Jill (Margaret Qualley) chegam em casa (e o que ela havia encontrado era Lily); a segunda temporada se encerra com ela dizendo a Kevin que “você está em casa”, e nessa casa estão todos os seus familiares; a terceira e última é a mais simples, mas igualmente poderosa numa forma complementar: “Estou aqui”, e este aqui é o mundo, é o lar, é o reencontro destes dois aproximadamente 15 anos depois da aparente ‘partida’ de Nora. Vocês podem seguir em frente, agora.

    Damon Lindelof havia prometido que jamais iria revelar o que aconteceu àqueles que desapareceram no dia 14 de outubro, e isso ele cumpriu, mas curiosa e inesperadamente, as histórias individuais dos protagonistas foram concluídas e expostas ao público, deixando abertas apenas as questões que invariavelmente também ficam sem respostas na vida. É um final avassalador, e feliz.

    Você pode acreditar que Nora atravessou a tal ‘máquina’, encontrou uma outra realidade potencialmente mais devastada que a sua (‘e se fosse ao contrário?’, propõe Lindelof dando um xeque-mate na nossa estabilidade emocional) e optou por voltar porque foi obrigada a decidir que o tempo passou para suas crianças e que ela não é mais que um fantasma em suas memórias.

    Ou você pode acreditar que naquele último segundo, antes de a cena do tanque ser cortada, que o que ela fez foi gritar e pedir para voltar, deixar de ser “A Garota Mais Corajosa do Mundo” e então se esconder de todos por vergonha e por indisposição de enfrentar novamente aquele ambiente destruído do coração de seu amado, sobretudo após todas as coisas ruins que disseram um para o outro no último momento juntos no quarto do hotel.

    Ambas as opções têm furos e são passíveis de questionamento. Mas será que alguma resposta satisfaria totalmente qualquer um? Ao optar por manter a questão flutuando, The Leftovers faz o oposto de desagradar — que, neste caso, não é agradar com unanimidade, mas sim deixar seu fiel público em estado de êxtase. Como pode um final tão simples ser tão destruidor?

    Muitas são as séries que desafiam o intelecto do público e se propõem a apresentar um intrincado quebra-cabeças a fim de se transformarem na próxima obsessão do público do ambiente virtual. Mas The Leftovers nada contra esta corrente, e em momento algum pede ao seu público que entenda, mas que sinta. Inevitavelmente, a sensação de acolhimento leva à compreensão, e são raras as tramas que equilibram tão bem a perfeição técnica (com atuações premiáveis, a câmera impecável de Mimi Leder na hora final e uma trilha sonora selecionada a dedo) com tamanha inspiração poética. Esta série foi  responsável por fazer as pessoas se sentirem mal sem nem entenderem direito o porquê, e a encarar o luto de frente, e a perceberem que as obsessões pessoais de cada um são maneiras diferentes de se lidar com a perda, ou apenas mais um ciclo da eterna busca por alguma coisa (qualquer coisa) que é a própria existência.

    Você é linda, The Leftovers. Me faltam palavras para lhe definir melhor do que isso.

     

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