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    Upload: Crítica da 1ª temporada

    Seu pacote do plano de dados chegou ao fim.

    NOTA: 4,5/5,0

    A tentativa da humanidade em combater o irremediável não é novidade. Conhecida como um dos primeiros poemas da história do planeta, a Epopeia de Gilgamesh, por exemplo, data do século XXVII a.C e conta a história de um monarca obstinado a encontrar o grande segredo por trás da imortalidade, passeando por catástrofes e conversas com divindades no meio do caminho.

    Em um dos trechos mais memoráveis da obra, Gilgamesh ouve de Utnapishtim (quanto nome complicado!), herói imortal, a seguinte sentença: "A vida que você procura nunca encontrará. Quando os deuses criaram o homem, reservaram-lhe a morte, porém mantiveram a vida para sua própria posse". Partindo desta introdução filosófica, vamos falar um pouco mais sobre Upload.

    Lançada em maio de 2020 como uma produção original da Amazon Prime Video, a série Upload é ambientada no distópico ano de 2033 e apresenta uma realidade na qual as pessoas mais abastadas financeiramente podem "dar um jeitinho" de chegar ao paraíso depois da morte. No entanto, como quase tudo na vida — do frigobar do motel ao plano de dados móveis —, mais dinheiro é mais conforto.

    Por exemplo: caso você tenha grana suficiente em 2033 (melhor não contar com a aposentadoria), terá a oportunidade de transportar sua consciência para um luxuoso hotel, junto a outros hóspedes que também já faleceram, e poderá ainda fazer contato com os entes queridos que ainda estão vivos, através de chamadas de vídeo, óculos VR, e até trajes especiais com sensação de toque para... bem, você sabe. 

    E a verdade é que um mundo tão plástico e artificial assim só poderia ter como protagonista Robbie Amell que, surpreendetemente (ou não), combinou com a atmosfera insólita de um futuro tão robotizado. Sem tanta versatilidade assim na atuação, Robbie está em mais uma daquelas obras que acertam na sua escalação justamente por extrair o melhor de seu estereótipo, a exemplo do divertido e sanguinário A Babá.

    Dentre as surpresas mais gratas do elenco principal estão ainda Allegra Edwards, que entrega uma personagem de considerável antagonismo, mas que foge da dicotomia de ser pintada como "a namorada surtada" e acaba rendendo momentos inesperadamente reflexivos, e Zainab Johnson, que até então havia aparecido apenas em 100 Humanos, da Netflix, e trouxe um alívio cômico muito bem-vindo. Protagoniza ao lado de Amell a atriz e cantora Andy Allo, que não chegou a surpreender mas também soube entregar bem as diferentes camadas da personagem. 

    Andy, no caso, interpreta Nora, a guardiã responsável por cuidar do avatar de Nathan (Robbie) em Lakeview, paraíso virtual onde ele (na verdade, sua namorada, Ingrid) escolheu passar a eternidade. Dentro deste contexto, todas as consciências são vigiadas por uma espécie de serviço de assistência 24h, que atende todas as necessidades e demandas das pessoas que receberam o upload ao mundo computadorizado, desde problemas de serviço técnico até questões existenciais.

    Pegando o gancho das tais questões existenciais, talvez o maior acerto de Upload seja construir piadas excelentes baseadas na nossa própria liquidez amorosa e social. No futuro, por exemplo, o Tinder tornou-se também um aplicativo de avaliação póstuma ao ato sexual e os usuários podem dar estrelas um para o outro com base no rendimento. O preservativo passou a ser também tecnológico e precisa do consentimento de seus usuários para poder funcionar, seguindo sugestões de estudos científicos e sociológicos feitos atualmente, inclusive. 

    Ainda falando das projeções atuais, os entusiastas das novas tecnologias provavelmente vão gostar do que nos é apresentado ao longo da série, já que boa parte dos avanços no campo são uma versão propositalmente exagerada do que já se espera. Talvez a melhor forma de resumir isso sejam os carros automatizados dirigindo-se sozinhos, que não apenas acabam sendo o motivo da morte de Nathan já no primeiro episódio, mas também demonstram como certos serviços de inteligência artificial continuam com as mesmas falhas após tantos anos. 

    Outro interessantíssimo paralelo social acontece dentro da própria contratação do serviço de planos para passar a eternidade. Aqueles que não podem se dar ao luxo de comprar um pacote de dados ilimitados em Lakeview têm duas opções: usar um pré-pago de 2GB que com diversas limitações, que congela o usuário até o mês seguinte, ou ir até algum paraíso diferente, menos luxuoso e mais "em conta". Quem nunca ficou na mão depois que seu plano de dados no celular acabou, que atire a primeira pedra. 

    O que consagra Upload como a melhor comédia de 2020, no entanto, é o equilíbrio entre suas temáticas. Além de contar com o número certo de episódios, com a duração ideal, as piadas, as sacas de inovações tecnológicas e o teor cômico sabe se intercalar muito bem com o mistério principal que ronda a trama. Logo no primeiro episódio, descobrimos que algumas memórias de Nathan foram sabotadas durante sua transposição de consciência para um avatar digital e isso vai mostrando-se um ponto cada vez mais relevante na narrativa. 

    Como que calculadamente dividida em atos, os três primeiros episódios da série dão lugar à ambientação do futuro, desde suas novidades até a construção de um terreno para ambientar o espectador ao longo do enredo; os três episódios do meio assumem questões muito mais reflexivas sobre solidão, autoconhecimento e projeção de traumas, enquanto os quatro finais engatam no mistério central e trazem algumas reviravoltas interessantes, apesar de um pouco telegrafadas. 

    Aliás, vamos logo tirar o elefante branco da sala: é impossível evitar a comparação a The Good Place. No entanto, não me assusta — na verdade até me fascina — que The Good Place tenha sido criada pelo Michael Schur e Upload pelo Greg Daniels: e que juntos eles tenham concebido a lendária The Office US (que inclusive é referenciada algumas vezes em Upload). Daniels conta ainda que descobriu da série do outro durante um jantar em meados de 2014 onde contaram sobre seus respectivos projetos para o futuro. 

    O ponto mais forte desta comparação é que não existem fronteiras quando se imagina uma nova realidade. O paraíso é da maneira que os autores quiserem que ele seja, tanto virtual ou divino — mas é preciso sustentar sua criação, ponto ao qual The Good Place se perdeu após o fim de sua excelente primeira temporada, mas logo retomou a força nas temporadas finais. 

    Outra coincidência interessante entre o texto das duas séries é o tom muitas vezes existencialista, lembrando muito a maneira como Douglas Adams retratava os conflitos interplanetários em Guia do Mochileiro das Galáxias por exemplo: tudo era um invólucro dos problemas terrenos e mudanos, até mesmo as falhas administrativas dos alienígenas. Em The Good Place, ninguém está muito interessado na salvação eterna através da fé e as figuras de autoridade máxima não sabiam governar direito. 

    Em Upload, no entanto, o debate a respeito da fé chega a acontecer com mais intensidade em alguns momentos, colocando o espectador na posição na posição de refletir em meio a algumas risadas constrangedoras (alô, The Office!). E já que estamos falando sobre a fé da imortalidade, não há maneira mais justa de encerrar esta crítica do que lembrando do início desta matéria.

    Como numa espécie de paradoxo, Gilgamesh, a exemplo de todos os outros seres vivos, morreu e não alcançou seu ideal de imortalidade. Suas construções e seus escritos, no entanto, o marcaram na história da humanidade e, de certa forma, o tornaram um imortal no meio a mais de 110 bilhões de pessoas que já passaram pelo mundo. Mas não duvide de que em questão de décadas, ou séculos, será mais fácil viver para sempre. Se você for rico, é claro.

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