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    Mostra SP 2019: Diretora francesa se inspira em Eduardo Coutinho para contar história de abuso sexual (Entrevista exclusiva)

    Texto do documentário "O Que Não Mata" foi desenvolvido a partir da experiência da jovem Ada.

    Em 2014, alguns anos antes dos movimentos Me Too e Time's Up, a diretora Alexe Poukine teve uma experiência que a marcou para sempre. Em uma sessão de seu primeiro filme, Poukine conheceu Ada, jovem que a procurou dizendo que tinha uma história "que não sabia como contar". Foi este o início do filme O Que Não Mata, que tem como base as palavras de Ada proferidas por diversas atrizes - e até mesmo um ator.

    Em passagem pelo Brasil durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Poukine nos contou como foi o processo de adaptação do roteiro escrito por Ada, uma das muitas vítimas de abuso sexual que não sabe como lidar com o desgaste mental e as sequelas deixadas por tal experiência. Confira a entrevista completa abaixo:

    AC: Como mulher, é impossível não ficar impactada com tais palavras. Como você chegou até essa escolha narrativa específica? Qual foi a inspiração?

    Poukine: Quando Ada veio até mim naquele dia após a sessão de um filme que havia realizado, eu fiquei em choque. Para ser franca, fico até envergonhada, pois fiquei me perguntando porque ela voltou até a casa daquele homem que a estuprou mais de uma vez. Então eu comecei a falar um pouco sobre ela, falar sobre a história dela às pessoas ao meu redor, e percebi que muitas amigas minhas viveram a mesma situação. É muito perturbador e comovente. Desde o início eu não queria que Ada falasse em frente à câmera pois sabia que ela teria reações violentas da audiência. Não queria ser a responsável por machucá-la novamente. O documentário fala sobre identificação e empatia, pois nós nunca queremos acreditar que podemos ser estupradas, que podemos ser vítimas. "Eu nunca vou fazer isso, eu nunca vou viver isso"... As mulheres pensam assim, e isso está errado diante do mundo em que vivemos. 

    A inspiração veio quando eu conheci o trabalho de Eduardo Coutinho. Achei o nome tão bonito, e aí encontrei o documentário Jogo de Cena. Quando eu vi o filme, fiquei maravilhada. Ele basicamente fez O Que Não Mata, pois seu trabalho realmente foi minha inspiração. Ele tinha essa capacidade de fazer as palavras saíram das pessoas de modo tão natural. Então, graças a Eduardo, pedi para Ada escrever sua história com dez capítulos, porque antes eu queria que fossem dez pessoas atuando no filme. Foi uma boa forma de protegê-la e de deixar claro que esta não é uma história individual, mas sim universal. É global, é política. É uma história sobre a dominação do homem.

    AC: E esta também foi uma forma de falar sobre estupro de uma forma clara e também dolorida, eu imagino.

    Poukine: Sim, sem nunca romantizar este ato. Para mim, filmes como O Último Tango em Paris, com Marlon Brando, deveria ser proibido. Ele estuprou Maria Schneider no fim da história e todos acham que é uma obra-prima. Não é, é apenas parte da cultura do estupro. Isso não deveria ser algo fascinante.

    AC: Isso é o oposto do que você faz, porque você toma uma situação normal, com Ada saindo com um homem, e a violência acontece. Basicamente, isso acontece o tempo todo...

    Poukine: Acontece - e rápido demais. Às vezes sem brutalidade, mas ao mesmo tempo sem consentimento. Muitas mulheres passam por essa experiência de controle psicológico, ainda mais em sociedade. Com a necessidade de ser sempre educada. No próprio filme há uma passagem em que Ada diz que ficou no encontro com aquele homem mesmo com ele falando sozinho sobre pornografia - ela não queria ser indelicada com ele.

    AC: Há homens na narrativa, e eles não falam a história de Ada, mas sim suas próprias histórias. Como foi o processo de encontrá-los?

    Poukine: É muito difícil falar sobre estupro quando se é vítima, mas ainda pior quando se é o agressor. Eu não quis fazer um filme contra homens - mas isso foi difícil, pois vários dos que entrevistei falavam palavras extremamente violentas e sexistas. Eu tive que tirar todos eles da lista e, então, apenas dois jovens restaram para fazer o filme. Um deles é de Quebec e o outro assistiu ao filme em duas sessões diferentes; em uma delas, ele levou o namorado também, o que foi realmente emocionante diante de tudo o que ele diz no filme. É como se fosse um pedido de desculpas. E quando os homens começam a ter uma certa consciência do que fizeram (se fizeram algo de errado), às vezes até se unindo para refletir sobre o que aconteceu, pode ser uma grande ajuda. Já é um começo, de certa forma.

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