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    Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar mostra "um Brasil que ninguém conhece", explica Marcelo Gomes (Exclusivo)

    Um filme sobre as transformações do mundo do trabalho.

    Conhecido pelos premiados dramas Cinema, Aspirinas e Urubus e Joaquim, o diretor pernambucano Marcelo Gomes realiza seu primeiro documentário com Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, que estreia dia 11 de julho nos cinemas.

    A premissa nasceu de uma visita do cineasta a Toritama, no interior do Estado. Gomes descobriu no local uma produção frenética de calças jeans, exportadas para todo o país, e que movimenta a economia de toda a cidade. Mais do que isso, viu gerações de famílias inteiras se dedicarem ao trabalho sem parar, com pouquíssimas horas de descanso.

    Desta observação nasce um documentário afetuoso sobre as novas relações de trabalho. O cineasta se coloca em frente às câmeras ao conversar com uma geração que reflete muito bem as transformações da economia e da sociedade brasileiras. 

    O AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com Gomes durante o Festival de Berlim:

    Berlinale

    Como estas pessoas reagiram à iniciativa de um filme sobre a vida deles?

    Marcelo Gomes: É muito curioso, porque elas têm experiência com reportagens-denúncia sobre a poluição no rio, ou sobre condições de trabalho, por exemplo. Por isso, ficavam muito assustadas quando viam a câmera, pensando que era mais uma denúncia. Mesmo assim, primeiro chegamos sem as câmeras, para conversar com eles. Esta era uma equipe, de uma forma ou outra, do Recife, que tinha a mesma linguagem deles, o mesmo sotaque deles. Então, eles ficavam mais tranquilos quando eu falava que tinha nascido ali. Pouco a pouco, construímos confiança com eles. Explicamos que seria documentário para passar no cinema, e eles questionavam: “Como assim? Um documentário no cinema?”.

    Uma vez alguém sugeriu em tom de piada que iríamos enviar o segredo deles para a China copiar a fabricação dos jeans. Eles se preocupavam muito com a espionagem industrial, mas aos poucos criamos uma confiança. Toritama tem um cinema, dirigido por um morador maravilhoso da cidade. Eu abri a câmera para eles verem todos os depoimentos gravados. Quando você faz filme sobre pessoas que trabalham com uma carga horária muito longa, geralmente se ressalta a via antropológica, ou se faz uma denúncia. Eu queria fazer outra coisa, queria refletir exatamente sobre o ser humano que está por trás daquela máquina, como ele encara a vida, como ele lida com o tempo, quais são os seus sonhos.

    O neoliberalismo é muito dinâmico, o capitalismo nos coloca dentro de uma lógica específica: “Consuma, consuma, mas para isso, trabalhe, trabalhe, trabalhe!”. Onde vai parar isso? Onde fica a contemplação, o momento para você mesmo, onde fica a transgressão sobre a vida? Porque se você não tiver esse momento para ficar consigo mesmo, você nem matura o sentimento da vida. A vida passa sem que você possa vivê-la.

    Você deixa as vidas amorosas e familiares em segundo plano para privilegiar o trabalho.

    Marcelo Gomes: Exatamente. Estas pessoas fazem muitas outras coisas além de trabalhar, é claro, mas a questão do documentário é essa: precisávamos ser muito precisos com o recorte do tema, para o espectador ter o mesmo sentimento que eu tive diante daquela cidade. Parece que a vida está passando pelos nossos dedos, sem que a gente consiga agarrá-la. Eu sei disso porque eu cheguei aos cinquenta anos de idade, então a questão do tempo é muito importante para mim, e queria refletir sobre isso. 

    Você chegou debater com os habitantes sobre este ritmo de trabalho, expondo suas próprias ideias?

    Marcelo Gomes: Cheguei a expor minha opinião, mas eles diziam: “A gente ganha dinheiro para isso! Trabalhar tanto dá dor na coluna, mas a gente ganha mais”. Existe um elemento muito cruel: se você não trabalhar tanto quanto o seu vizinho, seu jeans vai ficar mais caro que o do seu vizinho, ele vai vender mais e você vai vender menos. A economia é muito instável. A gente voltava três meses depois em Toritama e descobria que um rapaz entrevistado antes já estava cheio de dívidas. A saia da evangélica pode ser moda em um verão, mas no outro verão ninguém compra mais, e eles perdem tudo. Não existe uma estabilidade econômica muito grande nessas fábricas.

    Então eles se escravizam ainda mais para manter a fábrica ativa. É curioso, porque este é um Brasil que ninguém conhece, um Nordeste que ninguém conhece. O que mais se falava nestes últimos anos é que nordestino não trabalha, vive de Bolsa Família, enfim... Esse preconceito todo. O filme é muito bom, também, para refutar este discurso. Esta é uma faceta do Brasil diferente, nova, mas, ao mesmo tempo, algo que precisa despertar uma reflexão em todo o mundo. Como vamos lidar com esta realidade a partir de agora?

    Você afirmou em Berlim que gosta de documentários em que o diretor diz claramente as suas motivações. O estilo à la Eduardo Coutinho, com o diretor em cena, serve de modelo para você?

    Marcelo Gomes: Em outras sessões do filme, eu dediquei o documentário à memória do Eduardo Coutinho, que é o meu grande mestre. Eu soube aqui [em Berlim] da morte dele, então quando cheguei, me lembrei muito do Coutinho a cada entrevista que dava. Eu acompanhei um pouco do processo de alguns filmes dele, eu visitava o set. Ele sempre vai ser sempre a minha grande referência. Eu me inspirei em filmes como O Fim e o Princípio, no qual ele vai para o Agreste na tentativa de compreender aquelas pessoas. Pedi ajuda todos os dias ao Coutinho para me guiar.

    Como se dá a relação entre as imagens captadas por você e aquelas feitas pelos próprios moradores durante as férias?

    Marcelo Gomes: Nós filmamos os habitantes sempre em um processo de trabalho. Foi uma construção cinematográfica do trabalho. Quando partimos para as imagens deles, sentimos certa intimidade. Eu invadi a casa delas pela primeira vez, e nada melhor do que descobrir a casa deles uma segunda vez através do olhar de home video, que eu achei maravilhoso. A textura é outra, a qualidade de som é outra, a gente sente que a gente está entrando no local com o olhar deles. Não é mais uma equipe de filmagem construindo esteticamente um documentário, e sim um momento home video.

    Aí acontece essa coisa maravilhosa, como o caso em que o Léo começou a filmar uma pessoa dormindo e depois eu também incluí uma imagem do trabalhador dormindo. É uma delícia quando acontece, o acaso é sempre muito bem-vindo. O diretor precisa ter muita sorte, mesmo que tudo tenha sido pensado, refletido. Passamos um dia inteiro explicando para eles como funcionava a câmera para que eles se sentissem à vontade com tudo o que decidissem filmar.

    Você acredita que estas pessoas tenham dirigido as imagens de suas próprias férias de modo a parecerem mais belas ou interessantes para o filme?

    Marcelo Gomes: Nós pedimos para eles filmarem tudo o que, de uma forma ou outra, provocasse alguma emoção neles, ou o que gostassem de fazer. Por isso eles filmaram a cena da jangada, o mergulho... Mas eles aparecem bebendo, comendo, dançando. Eles expuseram a vida deles de uma forma maravilhosa para a gente, incluindo toda a intimidade de um carnaval ali presente, o que contrasta, novamente, com o retorno a Toritama. Você encontra o peso da Quarta-Feira de Cinzas, quando vai começar novamente o ano.

    Alguém me perguntou: “Por que você não filmou mais das fábricas? Eu queria ver mais!", e respondi: “Você ficaria louco se visse aquelas máquinas todas de novo, trabalhando por um ano”. A gente precisava terminar ali, com aquele jeans caindo, representando a roda vida do capitalismo, a roda viva desse sistema do qual não conseguimos mais sair. Escapamos apenas para o Carnaval, porque ainda não somos a China!

    Mesmo neste local onde se fala apenas em trabalho e produtividade, o seu foco é o afeto.

    Marcelo Gomes: Sim, é um contraste. Eu pensei: "Como vou fazer um filme sobre trabalho?”. As pessoas já trabalham de nove às seis, e depois vão ao cinema para assistir a um filme sobre trabalho? Seria insuportável. Se não tiver humanidade por trás daquelas máquinas, não vai funcionar. Então, o tempo todo tentamos cruzar a emoção com a dureza do trabalho. É necessário emoção, por isso que a gente entrevistou uma série de personagens fortes, e depois selecionamos pela singularidade e pelo afeto.

    Na edição final ficaram os personagens que mais nos emocionaram porque era necessário isso, senão ficaria insuportável. Eu assumo essa dificuldade: em determinado momento eu levo a câmera ao campo, tiro o som, não aguento mais. Eu, junto com o espectador, exponho essa dificuldade de filmar um trabalho que não para, que tem um barulho ensurdecedor. A dinâmica sempre foi essa: o trabalho e a emoção, o retrato destes seres humanos com um carisma maravilhoso. 

    Qual é a importância de debater este modelo de industrialização em 2019?

    Marcelo Gomes: É muito importante. De um ano para cá, desde que começamos o documentário, várias leis trabalhistas mudaram no Brasil, muitos direitos foram retirados do trabalhador. O governo anterior promoveu o trabalho autônomo, e hoje em dia muitas pessoas trabalham como autônomas. O que significa ser autônomo? É trabalhar e não ter que pagar a previdência. Você se torna mais instável, e consome menos. Se você tem carteira assinada, com a garantia de um contrato, você vai consumir mais.

    Todas as sociedades capitalistas vivem do consumo: se o consumo diminui, a produção diminui e quantidade de empregos diminui. Esta promoção do trabalhador autônomo está aumentando o desemprego, aumentando a instabilidade do trabalhador e retirando os direitos dele. Agora o novo governo acabou com o Ministério do Trabalho e planeja extinguir a Justiça do Trabalho. Ou seja, o Brasil inteiro vai regredir.

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