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    Relatos do Front: Diretor critica política de segurança pública e compara Wilson Witzel a "um tio que fala um monte de besteira" (Entrevista)

    Com ajuda de um painel diversificado e representativo da sociedade brasileira, documentário busca desmitificar a violência urbana no Brasil.

    Em cartaz nos cinemas brasileiros desde a última semana, Relatos do Front é o segundo documentário comandado pelo cineasta Renato Martins. Em 2016, ele codigiriu Geraldinos, com Pedro Asbeg, um filme sobre a história da Geral do estádio do Maracanã. Agora, em seu primeiro filme solo, Martins explora as complexas variáveis da segurança pública no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, e escancara as raízes do processo de criminalização da pobreza.

    De policiais militares a ex-traficantes, passando por psicólogos, historiadores, advogados, jornalistas e mães que perderam seus filhos em conflitos armados, o filme busca dar voz aos discursos sistemicamente silenciados ao longo da História.

    O diretor Renato Martins conversou com o AdoroCinema sobre Relatos do Front e analisou o momento atual da segurança pública no País. 

    Como foi o processo de compilação das imagens do filme e qual o impacto desse acervo na roteirização?

    Renato Martins: A gente fez um trabalho de pesquisa muito grande, que começou em 2014, quando a gente fez as primeiras entrevistas. A gente estava muito interessado em ouvir os relatos das pessoas que vivem cotidianamente nesse front de conflito armado e nas imagens que iriam ilustrar isso. Acabamos chegando no cinegrafista Jadson Marques do "Factual RJ", ele tem um canal no YouTube e desenvolveu uma técnica particular para filmar operações policiais sem que seja alvejado. Então, a maioria daquelas imagens de operação policial são do Jadson. Além delas, a gente foi buscar no acervo da Globo, já que a Globo News e Globo Filmes são coprodutoras do filme. E também encontramos muita coisa na Internet, até mesmo em mensagens de WhatsApp, que é um material filmado pela própria população. O nosso olhar, inicialmente, estava muito aberto, foi só depois dessa pesquisa que fechamos, para que essas imagens fossem organicamente inseridas. 

    Antigamente, quem tinha os meios para fazer algum tipo de registro do cotidiano nas comunidades eram pessoas de fora, que não habitavam aquele espaço, o que gerou até uma glamourização da "vida na favela". Hoje em dia, todo mundo tem um smartphone em mãos. Falando de um ponto de vista social, qual você acredita ser a influência da documentação da violência urbana no debate sobre segurança pública e na realidade das famílias que convivem com esses conflitos armados? 

    Renato Martins: A favela é um dos lugares mais ricos das cidades no que diz respeito à diversidade. Então, é fundamental que eles registrem o cotidiano, enquanto identidade cultural e local. Isso tem que ser feito de dentro, para mostrar para as pessoas que estão fora, que nunca entraram ali, como é aquela realidade. Com esse empoderamento, eles podem filmar de tudo, inclusive as mazelas. Usar a câmera do celular para mostrar o que acontece em operações violentas ou confrontos entre bandidos é também uma forma de se defender. Muitos desses materiais que eles filmam acabam sendo usados nos autos de processos. É uma ferramenta muito importante para todo cidadão, seja onde for, principalmente nas comunidades. Inclusive, a polícia deveria filmar as ações dela, sendo acompanhada. Porque se a gente está debatendo a resistência, então que seja registrado e colocado à população de uma forma séria e profissional, porque aí teríamos essas imagens como comprovações reais sobre o que de fato aconteceu em uma situação de confronto, e não apenas uma opinião. 

    Uma das mensagens do filme é a de que a criminalização da pobreza gera benefícios para os políticos e lucros para a indústria armamentista. O painel de depoimentos que vocês fizeram, com sociólogos, policiais civis e militares, ex-presidiários etc. é muito diversificado, porque mostra o debate a partir de várias visões. Foi cogitada a possibilidade de incluir políticos e empresários nos depoimentos? 

    Renato Martins: Sobre os políticos, achamos que era melhor não incluí-los na história, porque a gente queria fazer um filme apartidário. Se você colocar um político A, B ou C, já vai ter uma conotação: “Ah, é um filme de tal ideologia, de tal bandeira”, e a gente queria fugir disso completamente. Sobre empresários da indústria armamentista, a gente também não procurou, porque eu preferi, como diretor, dar voz àquelas pessoas que têm pouca voz, que estão no front. A indústria armamentista tem um lobby enorme no Senado, eles estão constantemente nos noticiários dando a opinião deles e incentivando a venda de armas. Eu me interessei em ouvir o que a sociedade tem a dizer sobre o que eles estão pensando para a gente. Então, eu queria dar voz para os policiais, que são quem representam o Estado na defesa da paz e da ordem, ex-criminosos, que viveram ali e podem dar relatos sobre como era e por que eles ingressaram nisso, e mães que, infelizmente, são vítimas que perderam seus filhos. Em seguida, adicionamos alguns especialistas para construir esse mosaico. Acho que trazer um representante da indústria bélica não iria contribuir com esse debate, iria só reforçar uma informação que a gente já conhece. 

    Você falou sobre o filme ser apartidário, mas o momento político é de muita polarização, e, ao adotar um discurso crítico em relação à segurança pública, o filme acaba se posicionando, de certa forma. O documentário tem a pretensão de ser imparcial? 

    Renato Martins: Desde o início, o projeto foi idealizado por mim e por um policial civil do Rio de Janeiro, o Sérgio Barata, e, em todo esse processo, a gente buscou a parcialidade, até o último corte na ilha de edição. Eu não queria impor o meu ponto de vista pessoal. Eu pensei: "Não, vamos ouvir as pessoas. O que elas têm a dizer?". Como você falou no início, estamos vivendo um momento muito polarizado no País, em que as pessoas não escutam mais. Hoje em dia, há uma subversão do conceito antigo de "contra fatos não existem argumentos", que agora se transformou em "contra argumentos não existem fatos". A gente segue acreditando na humanização das pessoas, em respeitar as diferenças e conhecer a dor do outro. A gente é totalmente favorável à cultura de paz, e o filme fala sobre isso.

    Quando falei de imparcialidade, estava me referindo ao fato de que, atualmente, dizer que não é todo mundo na comunidade que trabalha para o tráfico, por exemplo, é o tipo de visão, no mundo polarizado, associado à esquerda. Então, quando eu digo que o filme se posiciona, é porque ele adota uma postura clara.

    Renato Martins: Sim. Eu fico muito assustado quando alguém fala que defender os Direitos Humanos ou o fato de que na favela não tem só bandido — na verdade, 1% é bandido e 99 são trabalhadores e pessoas incríveis — está associado a um discurso de esquerda. Eu fico muito confuso com isso. É um tema recorrente nas campanhas políticas, nas vendas de conceitos, mas eu não compro esse conceito. Em algumas exibições do filme, ouvi pessoas se chocarem com a voz dada aos policiais, dizendo: “mas como assim? Polícia não é isso. Os caras vão lá, entram e matam". Então, o filme vai despertar essas reações, com certeza, mas, se ele despertar isso dos dois lados, é porque chegou na imparcialidade que a mim interessa. 

    O documentário passa uma ideia otimista de que essa polarização pode ser revertida, ao mesmo tempo em que evidencia a inversão de alguns valores e o revisionismo de fatos históricos. Como retomar esse debate de forma equilibrada se nem a nossa base histórica está consolidada? Você acha que o filme tem um papel na despolarização?  

    Renato Martins: Eu acho que pode trazer reflexão, questionamentos e informação. A gente não quer apontar o dedo para ninguém, nem colocar um como algoz e outro como vítima. É um filme que humaniza todos os personagens, e a mensagem final é que somos todos vítimas de um sistema muito violento. Em relação à sua pergunta, o que acontece hoje é que estamos vendendo conceitos e palavras para justificar ações. Se a gente não resolver nossas questões históricas, como a abolição da escravidão e a ditadura militar que aconteceu neste País, o problema vai continuar sendo empurrado para debaixo do tapete. Se a gente, enquanto sociedade, não estiver disposto a debater nossos históricos raciais, econômicos e culturais, essa situação lamentável não vai acabar. A violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria, por exemplo, e a gente acha que está tudo certo. Temos que começar a prender com inteligência. Se você faz um trabalho de inteligência em uma operação, você não precisa disparar uma arma, porque você prende as pessoas certas, leva elas a julgamento e dá a punição correta, isso é o Estado Democrático de Direito. Se a gente justifica a nossa ação alegando que o outro lado é violento, então a gente está se transformando naquilo que a gente critica. 

    Alguns depoimentos recentes do governador do Rio, Wilson Witzel, incluem falas como "a polícia não mata inocentes" e "a polícia vai mirar na cabecinha e... fogo", além da polêmica sugestão de explodir pessoas com um míssil na Cidade de Deus. Como você avalia o discurso dele?

    Renato Martins: É um momento muito complicado. Temos um presidente que acredita que armar a população vai resolver a violência, sendo que todos os índices e estatísticas, feitas por institutos sérios, mostram que é o contrário. Temos um governador que acredita que um sniper "mirar na cabecinha" e lançar um míssil não é má ideia. Será que é de um míssil mesmo que a favela precisa? É isso que o governo do Estado tem a oferecer à favela? Ele vai explodir a moradia e o patrimônio de vários trabalhadores? Não são esses mesmos trabalhadores que ele quer explodir que estão ali trabalhando diariamente na casa dele, possivelmente? Que estão na cozinha fazendo uma comida gostosa, que cuidam das crianças, que cuidam da portaria de um prédio. Ele vai explodir as pessoas que trabalham para ele? Porque com um míssil você não explode só aquele criminoso com uma arma na mão, você explode um raio gigante de pessoas, casas, crianças, jovens e idosos. Isso é um discurso populista que faz sentido para algumas pessoas que estão com medo. Eu tenho dificuldade de acreditar que a população realmente quer isso. Acho que todos nós temos aquele tio na família que fala um monte de besteira. Para mim, essa fala dele me lembra isso. O problema é que o cara não é o tio, ele é o governador. E eu acho realmente muito complicado ouvir uma coisa dessas de um governador do Estado do Rio de Janeiro. 

    Existe agora, principalmente após a eleição presidencial, um debate acirrado sobre fake news e conglomerados de mídia cobrindo a história a partir do ponto de vista de uma elite, o que talvez configure uma certa manipulação na narrativa no que diz respeito à violência urbana. Como você mencionou antes, o filme é coproduzido com a Globo News. Você acredita que isso prejudica de alguma forma o alcance da mensagem a ser passada pelo documentário? 

    Renato Martins: Dependendo do ponto de vista de quem está avaliando o filme, isso pode ser um problema, ou pode ser um facilitador de comunicação, de narrativa. Eu não sei dizer se isso vai determinar que o filme não chegue em determinados setores ou não. Neste momento, todo mundo tem as opiniões pré-formadas, o que é normal, faz parte da sociedade, mas eu acredito que você possa ouvir o outro lado e aí reformular algumas opiniões para seguir adiante. É uma incógnita, pode ser que por eu ter esses copatrocinadores do filme, que na verdade deram uma ajuda pequena comparada ao resto do orçamento do filme, eu tenha um problema. Não tenho problema nenhum com isso, eu sou muito grato. Foram os primeiros a acreditar no nosso filme quando ainda era um pedaço de papel. O filme é totalmente independente, nunca houve uma imposição ou questionamentos do que é abordado nele, então, por mim, está tudo certo, mas as pessoas vão ter a sua própria opinião. 

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