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    Game of Thrones, o fim da última série que o mundo viu junto

    O fenômeno chega ao fim, mas seu legado continua.

    Há alguns fatores que contribuíram para a construção do legado de Game of Thrones. A série que vai entrar para a história como a produção mais popular da TV não começou a sua jornada, em 2011, já sabendo que este era o posto que iria ocupar quase uma década depois. E não é apenas porque tem dragões, lobos gigantes, zumbis de gelo e um reino de fantasia que Game of Thrones se tornou aquilo que é — uma série que atinge inevitavelmente mesmo aqueles que não a assistem. Na mais pura sinceridade, existe um pequeno fator de sorte que contribuiu.

    Isso não significa que não haja mérito dos envolvidos, mas o fato é que há uma “jogada do acaso” que contribuiu para o cenário que temos hoje para esta série. A excelência da história criada por George R.R. Martin à parte, Game of Thrones não ocuparia o status cultural que ocupa não fosse uma série de fatores técnicos alheio às vontades de elenco, produtores, diretores, roteiristas ou até público.

    Mas estamos falando de uma série que desafiou o espectador desde os seus primeiros momentos, da queda do pequeno Bran Stark do alto de uma torre à decapitação de Ned. É claro, outras já haviam rompido com as regras da TV por muitos e muitos anos antes de David BenioffD.B. Weiss cogitarem adaptar “As Crônicas de Gelo e Fogo.” Twin Peaks ateou fogo ao livro de regras lá em 1990 e provou a relevância das telinhas; The Sopranos fez o exato oposto do que era o convencional em 1999 e se tornou o início de um movimento que hoje é conhecido como a Terceira Era de Ouro da Televisão. E Game of Thrones segue por este mesmo caminho dos avessos. A ruptura estabelecida pela história de Martin, aliás, vem do exato ponto de encontro entre dois sentimentos opostos: a admiração (neste caso, pelas obras de fantasia como a de J.R.R. Tolkien) e o criticismo (expresso através de um desejo de imprimir uma visão menos utópica e mais balanceada em nuances a uma história de ficção).

    Aqui, a pergunta se repete: por que, então, Game of Thrones parece maior do que qualquer outra coisa que já fez ou será feita nas telinhas?

    Helen Sloan/HBO

    A resposta desta questão não tem origem em orçamento, tampouco em um desejo repentino sentido por 43 milhões de norte-americanos de verem uma garota de cabelos prateados montada em um dragão atiçador de fogo. Game of Thrones surgiu em 2011, alguns anos antes de John Landgraf despontar em eventos para o mercado anunciando o início do que é hoje conhecido como Peak TV. 2011 também é antes de a Netflix começar a investir na produção de conteúdos originais: as pioneiras House of CardsOrange Is the New Black brotaram apenas exatos dois anos depois, em 2013.

    Seja ou não golpe de sorte, Game of Thrones calhou de existir em duas confluências.

    A primeira confluência é de momento. Após The Sopranos, The WireMad MenBreaking Bad (que, curiosamente, acabou também em 2013), muitos analistas de TV decretaram — com razão — que era o fim da Era dos “Homens Difíceis”, ainda que o Frank Underwood do agora infame Kevin Spacey tenha tentado dar uma sobrevida ao estereótipo. Não que estes sejam os únicos exemplos, mas são os mais proeminentes. Quando a saga de Walter White chega ao fim, leva para o caixão consigo o ineditismo e o brilhantismo do que se transformou em uma fórmula. A TV, assim como o Cinema, é feita de ciclos, e o da Terceira Era de Ouro, para o bem ou para o mal, chegara ao fim.

    O drama de fantasia da HBO aproveitou a maré do fim deste ciclo e iniciou o seu próprio, mesmo que não tenha feito isso de forma proposital. Game of Thrones ainda navega com esta maré de personagens que existem em uma zona moral cinza, que tomam decisões dúbias e questionáveis e obrigam o público a ver os lados bom e ruim ao mesmo tempo dos seus personagens favoritos e dos mais odiados — e oferece uma gama tão variada de motivos que é perfeitamente cabível que o personagem favorito de uns seja o mais odiado de outros, e ambos os lados tenham uma parcela de razão neste debate. Por isso, o que a história faz ao existir neste “fim” dos Homens Difíceis é aprofundar o que já estava disseminado na TV, e aplicar o conceito a um subgênero específico (a fantasia), e com muito dinheiro (o da HBO).

    A segunda confluência é tecnológica. Game of Thrones surgiu quando a Netflix já existia, mas quando ainda não era como a conhecemos hoje. Obviamente o público já consumia televisão utilizando a internet como segunda tela, mas a homérica jornada dos Stark foi capaz de absorver para si tudo o que restou do hábito de se consumir televisão semanalmente. E isso foi gerando uma bola de neve, também impulsionada pela grandiosidade dos eventos da série. A partir do momento em que foi ficando complicado entrar no Facebook ou no Twitter na segunda-feira sem ter assistido ao episódio do domingo anterior e não dar de cara com um spoiler gigante, a regra foi se fazendo naturalmente: Game of Thrones não é uma série de TV, é um evento. Se você não assistiu ao episódio do Casamento Vermelho no domingo à noite na hora em que ele foi exibido, a responsabilidade de fugir dos spoilers era sua, porque as pessoas simplesmente não iriam deixar de comentar este gigantesco trauma a cada canto ou em cada oportunidade.

    Helen Sloan/HBO

    O efeito bola de neve não apenas fez a série se tornar a campeã de downloads ilegais mas forçou a HBO a aprender a driblar os pirateamentos e atender o público da melhor forma possível, ou pelo menos tentar. Foi assim que surgiu o HBO Go, que posteriormente se tornou também um serviço independente da assinatura da TV a cabo e, desta forma, ainda mais acessível. A popularidade da série também incentivou a sua exibição nos mesmos dia e horário que nos Estados Unidos em outros países — mesmo naqueles em que não é exibida pela HBO —, o que amplifica ainda mais a sensação e o impacto causados por uma audiência global. No fim das contas, o sucesso de Game of Thrones se transformou em algo tão grandioso que ele passou a se retroalimentar: quanto maior a série ficava, mais ela crescia. Um monstro que se nutre do próprio ego.

    O resultado desta conta é que você provavelmente conhece alguém que correu contra o tempo para fazer uma maratona das sete temporadas antes da estreia da oitava, simplesmente porque não queria ficar de fora da festa, das conversas de corredor e dos memes no Twitter.

    O impacto causado por Game of Thrones faz com que ela seja, neste momento, em 2019, o maior catalisador de audiência da TV em tempo real nas redes sociais. E nenhuma produção de streaming é consumida ou se reflete da mesma forma. É claro, comentários sobre 13 Reasons WhyStranger Things ou The Marvelous Mrs. Maisel existem, mas eles acontecem em diferentes ritmos, com questões intrínsecas ligadas a produções cujas temporadas são liberadas inteiramente de uma só vez: qual é a etiqueta do spoiler para produções em que é impossível saber o ritmo no qual outras pessoas estão assistindo? Game of Thrones tem um dia e um horário marcados. O Mundo Sombrio de Sabrina, não.

    Helen Sloan/HBO

    É claro que Game of Thrones não é a única produção serializada consumida desta forma. Master Chef, RuPaul’s Drag Race, The Voice e até o BBB são exemplos de que o formato está longe de morrer. Mas a escala em que a série da HBO opera é algo tão raro e tão único que dificilmente veremos algo parecido tão cedo. Por isso, quando ela for embora, não haverá substituta. Nem mesmo quando surgir outra série tão unânime quanto, ou até mais. Desconsiderando todos os problemas de qualidade das temporadas mais recentes, Game of Thrones segue como a precursora da popularização do consumo de TV na internet. É para os anos 2010 o que I Love Lucy foi para a década de 1950.

    Historicamente, arte é algo consumido em coletividade. A ânsia de debater ou descobrir se outras pessoas compartilham da mesma opinião sobre o fim da novela, da série, do filme ou do livro sempre aconteceu. Mas se antes isso era feito com vizinhos, amigos de escola, trabalho ou fóruns obscuros na internet, o ineditismo das redes sociais como Instagram, Twitter e Facebook fez com que esse sentimento rompesse barreiras de fuso horário ou distância entre milhares de pessoas.

    Por isso, não é mais necessário esperar que alguém assista à mesma produção que você para falar sobre ela. Estamos apenas a uma busca de distância de um grupo pronto para discutir os pormenores de qualquer coisa transmitida na TV, e isso significa também que a internet possibilita que o debate sobre noticiários passe pelos mesmos processos virtuais que qualquer produção fictícia — um ponto que, por si só, valeria outro texto. Quando a abertura de Game of Thrones for exibida pela última vez em um episódio inédito neste domingo, dia 19 de maio, o capítulo final da série vai marcar não apenas o fim da pergunta “quem vai se sentar no Trono de Ferro,” mas também o provável divisor de águas na forma como consumimos televisão. Ou streaming.

    A verdadeira Guerra dos Tronos, no fim das contas, foram os amigos que fizemos pelo caminho e as montagens da Cersei nas costas do Dumbo que compartilhamos no WhatsApp.

     

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