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    Festival de Brasília 2018: "Los Silencios coloca o Brasil dentro da América Latina", afirma a diretora Beatriz Seigner (Exclusivo)

    A vida na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.

    Depois de ser exibido no Festival de Cannes, o drama Los Silencios teve a sua primeira exibição brasileira no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A coprodução entre Brasil, Colômbia e França se passa na pequena Ilha da Fantasia, uma cidade parcialmente alagada onde imigrantes lutam para manterem as suas casas apesar das pressões institucionais.

    A partir da experiência neste local, a diretora e roteirista Beatriz Seigner criou a história de uma família que convive com os mortos: mesmo tendo perdido o marido (Enrique Diaz) num confronto armado, a batalhadora Amparo (Marleyda Soto) tenta se reconstruir e cuidar dos filhos. Enquanto isso, os mortos caminham pelo vilarejo, vestindo roupas com curiosas cores fluorescentes. 

    O AdoroCinema conversou com a cineasta sobre o filme, que chega em breve nas salas brasileiras:

    Divulgação / Leonardo Mecchi

    A cidade na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru é um personagem importante. Como chegou neste lugar?

    Beatriz Seigner: Ele era exatamente o que eu estava buscando: um lugar de suspensão, onde as pessoas precisam realmente lutar para ficarem lá. A Ilha da Fantasia tem esse nome, de verdade, e surgiu pelo rio Amazonas há cerca de 20 ou 30 anos. Muitos imigrantes começaram a ir para lá, montaram as suas casas e a sua própria comunidade. 

    Foi curioso, porque eu tinha uma versão anterior do roteiro que se passava em Manaus, com casas de palafita. O rio também subiria e invadiria a casa conforme o processo de luto da personagem. Mas essa comunidade foi destruída para a construção dos estádios e outras instalações da Copa do Mundo. Então comecei a procurar novas locações. O meu produtor local de Manaus me sugeriu a Ilha da Fantasia, e quando eu finalmente pude ir lá, o espaço caiu como uma luva. É uma ilha na fronteira entre vivos e mortos, e entre mundos diferentes, porque passa quatro meses embaixo da água.

    A ilha também ajudou nesta concepção de que o pai seria um fantasma. Quando eu cheguei lá e comecei a fazer perguntas para a população, para saber como era o dia a dia, eles me falaram dos fantasmas que circulavam por lá. De fato, a cidade foi palco de chacinas e massacres. Eles diziam que os fantasmas entravam no corpo das pessoas e as forçavam a fazer algo que não queriam. Então eu reescrevi o roteiro para encaixar nisso. Deixei de lado o roteiro anterior e recomecei do zero. 

    A situação política da ilha deve ter mudado muito desde que você imaginou a história, oito anos atrás. Qual é o peso de apresentá-la hoje, em 2018?

    Beatriz Seigner: Eu comecei a trabalhar neste projeto porque fiquei muito tocada com esta história contada por uma amiga, sobre a infância dela, e comecei a sonhar com isso. Decidi escrever para entender porque isso me tocava tanto. Comecei a pesquisar e colocar no papel. Durante este período, começaram as negociações do processo de paz em Havana, que é um documento de chorar quando você lê. Foram 50 anos de guerra, mas olha onde eles chegaram: o documento fala sobre equidade de gênero em todos os capítulos, fala sobre reforma agrária, sobre o direito das mulheres, sobre a justiça restaurativa... 

    Em termos geopolíticos, isso era algo que já tinha acontecido quando começamos a filmar. Mas o documento não passou no plebiscito, porque a direita caiu em cima, dizendo que as mulheres iam acabar com a família - aquele discurso de sempre. Quem é atacado primeiro são sempre as mulheres. É como aqui no Brasil, com Bolsonaro. Tudo isso foi incorporado aos poucos no roteiro, e como o processo de captar recursos demora muito tempo, ele se transformou demais. Se eu tivesse filmado com a versão que tinha inicialmente, a história não seria tão atual.

    Divulgação

    Os fantasmas do filme são tratados de modo realista, sem uma grande distinção com os vivos.

    Beatriz Seigner: Quando eu conversei com a Abuelita e os outros moradores, percebi que os mortos conviviam com eles. Não eram rituais em que os mortos apareciam, esporadicamente: eles faziam parte do dia a dia. Os moradores da ilha me diziam que perderam objetos porque os fantasmas tinham pego, ou uma maçã que apareceu era presente de um fantasma, ou ainda que tinha cabelo de fantasma na casa deles. Fiquei intrigada com essa coexistência entre vivos e mortos. 

    Por isso, decidi tratá-los como todos os outros personagens. Você só percebe que são fantasmas à medida que recebe informações da história. A questão das luzes e cores fluorescentes é parte da cultura local: eles usam muitos elementos fluorescentes, e quando tomam Ayahuasca, veem os espíritos com estas cores. Um produtor francês sugeriu que os traços distintivos fossem feridas, mas eles não são zumbis. Os códigos são outros. Eu gostava do fluorescente porque os mortos também tinham uma forma de vida, eles brilhavam. 

    Por que decidiu misturar atores experientes com não-atores locais?

    Beatriz Seigner: O Enrique Diaz é uma pessoa que eu admiro demais. Enquanto escrevia o roteiro, pensava muito nele. Além disso, ele tem uma origem latino-americana, porque nasceu fora do país, e o pai dele trabalhava com reforma agrária. Por mais que seja ator, tem uma história muito parecida com a do personagem. A Marleyda Soto é uma grande atriz colombiana, muito experiente, e o irmão dela quase morreu numa situação de guerra parecida com a do filme. Então são atores que pertencem a essa história de maneira muito forte.

    Para mim, trabalhar com eles era a minha zona de conforto: a gente tinha uma espécie de co-criação, porque todos propunham algo, a gente lia o roteiro juntos, discutia juntos. Quero usar isso no próximo filme que eu fizer: vou ensaiar, voltar a fazer algumas alterações no roteiro e só então filmar! Com as crianças, não tem jeito, tinham que ser da região, e eu precisaria trabalhar com ela. Já a Abuelita e os demais adultos da ilha foram pessoas com quem eu me encantei quando os encontrei, então os personagens foram escritos para eles.

    Eles adoraram o convite, mesmo sem ter nenhuma experiência. Aceitaram por educação e por poderem falar da luta deles. Nós perguntamos se poderíamos ajudar em algo, em troca de filmar na região deles, e me pediram uma escola. Eu disse: "Olha, acho que não conseguimos fazer uma escola, mas vamos fazer uma casa para servir de cenário, e ela pode virar um centro cultural". Nós fizemos isso, e hoje ele se chama Centro Cultural Los Silencios.

    Divulgação

    Como percebe a questão identitária do filme? Você vê Los Silencios como tipicamente brasileiro, ou talvez tipicamente latino-americano?

    Beatriz Seigner: O filme coloca o Brasil dentro da América Latina. Todas as questões abordadas são muito próximas das nossas: a reforma agrária, os tiroteios em escolas, que me lembram a situação no Rio de Janeiro... Outro personagem diz que somos filhos dos mesmos pobres, lutando contra nós mesmos. Eu penso nos nossos policiais e na guerra às drogas, que na verdade é uma guerra contra a população mais vulnerável. São questões muito próximas da nossa realidade. Ao invés de filmar a diferença, eu descobri muitas questões nossas no outro. Para mim, isso é um espelho do que vivemos no Brasil.

    Para mim, o filme é latino-americano, até porque eu também vejo o Brasil como um país latino-americano! A gente tem dificuldade de assumir isso. A gente mal aprende o espanhol, e nem estuda Bolívar, por exemplo. Precisamos ver este aspecto como pertencente à nossa história também. A partir do momento em que a gente se juntar, vamos nos tornar muito mais potentes.

    Eu fico feliz de saber que vai ser recebido em outros lugares, como na China, onde já tem distribuição. No festival de Cannes, uma distribuidora de Sarajevo veio me dizer que era refugiada, e também convivia em paz com os mortos. É surpreendente algo tão nosso se conectar com o resto do mundo dessa forma. A questão da imigração está presente no planeta como um todo, e da luta das mulheres também. É algo que vai além das fronteiras. Esse é um filme transnacional e transgeracional. 

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