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    CineOP 2018: O Atalante é exibido em gloriosa cópia restaurada (Entrevista Exclusiva)

    Conversamos com a restauradora francesa Céline Ruivo, uma das responsáveis pela versão 4K do clássico de Jean Vigo.

    Da lista dos 50 maiores filmes de todos os tempos divulgada pela prestigiada revista Sight & Sound, um deles se destaca por sua trajetória quase mitológica, desde seu nascimento fortuito, passando por sua morte precoce, à sua redescoberta inesperada: trata-se de O Atalante, obra-prima do francês Jean Vigo que enfrentou censuras, cortes, rejeições, esquecimentos e outras espécies de crueldades até atingir o 12º lugar na supracitada compilação - e também um posto de honra na programação do CineOP 2018, onde a dramédia romântica francesa foi exibida em uma gloriosa cópia restaurada.

    Supervisionada por Céline Ruivo, a nova versão do grande trabalho de Vigo é um deleite para os olhos gerado através de um trabalho de extrema paciência e de busca pelos negativos e cópias anteriores, espalhadas pela França, Itália, Reino Unido e Bélgica. Na cidade mineira para apresentar uma masterclass sobre os restauros que realizou sobre O Atalante, Ruivo nos concedeu entrevista exclusiva para explicar um pouco acerca de sua profissão e dos desafios que encontrou em seu mais recente projeto - mas, antes de mais nada, é preciso explorar o hercúleo trajeto deste drama cômico, desde 1934 até hoje.

    De fato, foi por um golpe do acaso que este longa-metragem nasceu - por pouco, aliás, o único esforço cinematográfico de maior duração de Vigo não foi um drama prisional. Temendo que sua parceria com o cineasta fosse vetada nas salas de cinema, especialmente após a censura sofrida pelo anárquico e brilhante média-metragem Zero de Conduta, o produtor Jacques-Louis Nounez decidiu fazer uma contraproposta à ideia inicial de Vigo: ao invés de rodarem o projeto original, eles trabalhariam em um roteiro completamente diferente - sobre as desventuras do capitão de uma balsa, sua esposa e a bizarra tripulação da embarcação -; estava posta, assim, a semente de O Atalante.

    No entanto, o início desajeitado seria apenas o primeiro dos problemas e logo se traduziria em uma produção infernal. Gravado no complicado inverno francês, o longa de Vigo estourou o cronograma de filmagens e ultrapassou o orçamento cedido pela lendária produtora Gaumont, que não ficou satisfeita com a condução rebelde do artista. Para agravar ainda mais a situação, o frio e a umidade fizeram com que a tuberculose de Vigo se tornasse ainda mais preocupante, confinando o cineasta à cama, de onde ainda encontrou forças para supervisionar parte da pós-produção.

    Lançado em abril de 34, antes para a imprensa e depois para o público em geral, O Atalante se deparou com uma curtíssima jornada de exibição. A história de amor entre Jean (Jean Dasté) e Juliette (Dita Parlo) fracassou na opinião da maioria e nem mesmo a presença de Michel Simon, astro da época, pôde aplacar a fúria da crítica e da audiência. Por isso, a Gaumont decidiu retirar o longa de circulação para torná-lo mais "comercial", cortando quase 20 minutos da versão de Vigo - extraindo, principalmente, uma sugestiva cena considerada erótica demais para a época, apesar de toda sua poesia e inegável beleza -, alterando o título e despachando a "nova" obra de volta para as salas - sendo recebida de maneira ainda mais hostil.

    No outro lado da história, seria apenas uma questão de meses para que a vida de Vigo chegasse ao fim: aos 29 anos, aquele que se tornaria um dos mais influentes cineastas franceses, faleceu, vítima da tuberculose que jamais tratou. O tempo, entretanto, seria generoso com o diretor e, principalmente com sua obra; com o passar dos anos, O Atalante foi sendo redescoberto e restaurado sucessivamente, atingindo cada vez mais pessoas ao redor do mundo - incluindo François TruffautEmir Kusturica e Jim Jarmusch, que declararam terem sido influenciados pela comédia - até que a Gaumont ordenar um segundo restauro da obra após a versão de 1990 - o que nos traz de volta à Céline e sua equipe:

    "Antes de mais nada, tivemos a sorte de contar com a pesquisa do historiador Bernard Eisenschitz, que já conhecia profundamente o trabalho de Jean Vigo e seus arquivos, porque o roteiro e as anotações que Vigo fez eram acessíveis através da filha dele, Luce. Então, a extensa pesquisa de Eisenschitz nos foi muito útil para a preservação da montagem original e das escolhas que Vigo fez. No geral, em termos da integridade ética da restauração, este é o primeiro passo: você sempre precisa pesquisar os documentos que existiam durante a produção do filme para se assegurar de que você será fiel ao roteiro, para checar se há algo faltando ou não ou para determinar se o roteiro foi modificado", contou a restauradora, explicando em detalhes o processo empreendido com O Atalante e chamando a atenção para a importância do respeito à visão original do realizador.

    Céline afirma isto, aliás, justamente porque a obra de Vigo foi muito mutilada desde 1934. Para além das remoções iniciais, as restaurações subsequentes adicionaram efeitos especiais e produziram outras alterações que não refletiam em nada as intenções de Vigo. De acordo com a técnica francesa, uma restauração não é um trabalho de (suposta) melhoria - é um processo cuidadoso de preservação - temática principal do CineOP - e de fidelidade: "Você não vai fazer, por exemplo, uma restauração em Dolby 5.1 de um filme que foi rodado em 1934, em um só canal de gravação. Mesmo com os problemas do sistema de som, que não era muito bom nos anos 1930, você precisa manter a integridade. O filme nunca teve um incrível som Dolby 5.1. Você não pode mudar a natureza do som. Estas são as perguntas que nós tentamos reunir e as coisas que tentamos respeitar. Fizemos concessões, mas pelo menos foram concessões encontradas em um meio-termo com a Gaumont", disse Céline, realçando o desafio de equilibrar escolhas estéticas com as pretensões comerciais do estúdio, que detém os direitos de O Atalante.

    Patrocinada pela Gaumont, pela Cinemateca Francesa e também pela The Film Foundation, companhia de Martin Scorsese, a impressionante restauração atual de O Atalante recupera a glória do cinema de Vigo, altamente inventivo e completamente subversivo para o puritanismo da época. Com o apoio do lendário fotógrafo Boris Kaufman (Sindicato de Ladrões), irmão de Dziga Vertov, Vigo criou sequências inesquecíveis em seu solitário longa-metragem, especialmente a delicada sequência subaquática, recriada por diretores como Jean-Luc Godard e Leos Carax. Com a revisão de sua obra, Vigo passou a ser encarado como um dos fundadores do realismo poético francês, estilo cinematográfico que vigorou até a revolução promovida pelos críticos da Cahiers du Cinèma e dos rebeldes diretores da Nouvelle Vague.

    Além de restaurar obras, Céline lembra, a propósito, que outro dos inúmeros papéis da Cinemateca Francesa, bem como de outras cinematecas ao redor do mundo, é funcionar como um  museu, um local de preservação da memória, principalmente em tempos onde a sociedade é cada vez mais (in)formada pelas redes sociais: "Mesmo estando em um momento onde tudo precisa ser rápido, onde o consumo é cada vez mais veloz e tudo é acessível, nós ainda precisamos educar o público. Temos que ensinar como os filmes eram feitos, as características de produção e que, idealmente, você deve ver este filme em uma sala de cinema, mesmo se a obra estiver disponível em outras plataformas [...] Uma das missões da Cinemateca Francesa e de outras cinematecas ao redor do mundo é preservar toda a tecnologia que permitiu a criação deste tipo de filme [O Atalante]. É uma espécie de metalinguagem. Você tem que ensinar ao público que o filme foi gravado em película, especialmente para as novas audiências, que não sabem nada sobre isso".

    Ressaltando que encontrar financiamento é sempre um aspecto complicado do processo, Céline admitiu que trazer de volta uma obra como O Atalante pode ser complexo, mas se manteve esperançosa sobre a relevância da empreitada: "Você precisa ensinar isso, você precisa explicar como era. É um desafio e é verdade que vivemos em uma sociedade onde o consumo é cada vez mais veloz, mas ao mesmo tempo também temos um sentimento crescente de perda. Na indústria musical, as pessoas que realmente amam música querem comprar vinis novamente. Isso não é por acaso. As pessoas se apegam ao meio, à forma original como a música era explorada e distribuída [...] O retorno deste amor pelos vinis nos faz ter esperança de que a experiência cinematográfica e os filmes continuarão vivos, mesmo que digitalmente", disse a restauradora que ainda acredita que as plataformas de streaming como a Netflix podem ajudar no processo de perpetuação do legado cinematográfico.

    No fim das contas, é disso que tratou-se a exibição de O Atalante no CineOP - e o festival como um todo, de fato: a preservação da memória e da História do Cinema para as próximas gerações. E se alguém ainda tem dúvidas de que é necessário manter viva a cinematografia que nos trouxe até aqui, basta ver esta nova cópia da obra de Vigo porque caso este filme não existisse, é mais do que provável que a História do Cinema tivesse sido outra. Por sorte - e por resforço de Ruivo e sua equipe - O Atalante segue em frente, a todo vapor.

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