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    "A ideia é apresentar uma imagem diferente do que os programas policiais fazem diariamente na TV", diz diretor de Corpo Delito (Entrevista Exclusiva)

    Documentário do estreante Pedro Rocha acompanha a relação difícil entre Ivan, solto em regime semiaberto, e sua tornozeleira eletrônica.

    Primeiro filme de Pedro RochaCorpo Delito estreia hoje nos cinemas brasileiros colocando em primeiro plano Ivan Silva, um preso em regime semiaberto nada confortável com o monitoramento via tornozeleira eletrônica. Teoricamente ele encontra-se finalmente "livre" após oito anos na cadeia, mas a prática não é tão agradável e estar em casa - tão perto e ao mesmo tempo tão longe da rua - acaba aumentando ainda mais suas aflições.

    Documentário construído com roteiro ficcional, trata-se de longa-metragem que dialoga bastante com o tempo em que vivemos, tanto pelo hibridismo cada vez mais adotado no cinema nacional, quanto pelo estímulo ao debate sobre as necessidades e desejos dos seres humanos que muitas vezes enxergamos apenas como criminosos. Em entrevista exclusiva o diretor comenta suas motivações, críticas ao projeto e o desenvolvimento da produção.

    Como nasceu a ideia do filme?

    O projeto partiu de um certo incômodo com uma imagem corriqueira nas cidades brasileiras que é o baculejo, aquela revista policial. Eu comecei a me perguntar, até um pouco retoricamente, como um policial escolhia as pessoas que mereciam ser revistadas - falo retoricamente porque a gente sabe que isso é simples de responder, é expressão do racismo estrutural que atinge principalmente jovens pobres e de periferias, negros especialmente. Gostaria de questionar o porquê disso e comecei a pesquisar um pouco sobre assunto, chegando numa escola do século XIX que teve forte influência aqui no Brasil que foi a Antropologia Criminal, que acreditava que os bandidos poderiam ser reconhecidos antes mesmo de cometerem o crime por conta do seu fenótipo. [...] Eu pensava que existia uma relação entre isso e os programas policiais de hoje em dia [e] o começo do filme era ensaístico, de crítica da imagem [...]. Depois de um tempo o roteirista Diego [Hoefel] questionou dizendo que seria muito 'pregar para convertidos', um filme intelectual demais, um pouco hermético. Que talvez o que a gente precisava, ao invés de fazer uma crítica da imagem, era tentar propor uma outra imagem dessa figura, apresentar uma imagem diferente do que os programas policiais fazem diariamente na televisão.

    E de que maneira vocês encontraram o protagonista Ivan?

    Os perfis foram elaborados ficticiamente, o Diego é roteirista de ficção e entre esses personagens tinha a figura de um apenado que estivesse em regime semiaberto sob monitoramento eletrônico. Procuramos e chegamos a um projeto privado de ressocialização de apenados chamado Fábrica Escola. Aplicamos questionários, fizemos entrevistas gravadas, depois teste de câmera e acabamos escolhendo o Ivan. [...] A experiência [dele] era com câmera de celular, recepção, assistir filme, mas com cinema ele nunca tinha tido [nada] e nem eu, na verdade. A experiência que eu tinha era do documentário jornalístico, da mídia livre, então de certa forma nos iniciamos juntos. [...] A gente discutiu as cenas durante o processo de produção, discutíamos durante a gravação, pouco antes de gravar e eu explicava o que a gente estava fazendo.

    E os coadjuvantes? O Neto particularmente ganha muita importância a partir de determinado momento do filme. Foi algo que ocorreu naturalmente ou estava previsto desde sempre no roteiro?

    Desde o começo a gente viu que tinha algo de franco e sincero na relação do Ivan com a câmera e o carisma do Neto, além da figura da Gleici como referência do Ivan, que oscilava entre a raiva e o humor, [...] e aí o processo se desenrolou de forma quase intuitiva também. Com muito trabalho, claro, mas foi mais acompanhar como essas relações se davam e até que ponto se estendiam. Aí [vieram] a tia da Gleici, a mãe do Ivan, a mãe do Neto, enfim, a gente foi ampliando esse círculo de personagens. [...] Com o tempo a gente identificou que o Neto dava esse equilíbrio ao filme de levar a câmera pra onde o Ivan queria e não podia ir. Era uma forma de colocar a questão dramática do filme sob outra perspectiva, sob outro viés. Depois de perceber isso a gente foi criando cenas e desenvolvendo do ponto de vista do roteiro essa consciência.

    Os advogados, policiais e juízes são atores?

    É todo mundo ator nesse sentido mais amplo de que quando você aponta uma câmera, todo mundo está interpretando uma imagem de si, tentando construir uma imagem. Mas a audiência que está no filme é a audiência que de fato decide o futuro do Ivan, o juiz César Belmino é juiz de fato e quando ele está julgando ali ele está realmente decidindo, dando a sentença pro Ivan. Não é um docudrama.

    Você enfrentou alguma dificuldade para controlar a vaidade dos intérpretes inexperientes? Há sempre o risco da tendência ao exibicionismo, não?

    Tem, mas aí você corta a cena depois. Tem algumas cenas que não dão certo mesmo e tem coisa que você repete três, quatro vezes e vai ficando boa. No fim das contas a vaidade é uma coisa muito boa pro cinema e é uma das coisas boas que fazem do Ivan uma figura cinematográfica, personalidade forte. Por isso que a gente fez um filme sobre ele.

    A decisão de não incluir cenas dele violando a limitação imposta pela tornozeleira foi para protegê-lo ou uma estratégia para não "queimá-lo" diante do público?

    Foi receio, pois a gente estava trabalhando numa posição delicada que envolvia justiça, processo criminal, o juiz fazendo parte do filme, então o juiz certamente assistiria ao filme e aí foi um freio que eu dei. Nem sei se foi o certo, mas foi algo que naquelas condições eu preferi segurar. [O papel alumínio] a gente filmou um bom tempo depois que ele já estava usando e a cena entrou porque ele confessou o uso para o juiz, então a gente não estava produzindo nenhum tipo de prova contra o Ivan.

    É possível notar no cinema brasileiro contemporâneo uma explosão do chamado documentário híbrido. Não que anteriormente ele não existisse, mas agora há muito mais o destaque de tal característica. A que você atribui esse movimento?

    Acho que é uma estratégia para chamar uma galera que está meio cansada, pois o gênero do documentário não-híbrido é uma receita que está muito desgastada.  [...] Eu venho do jornalismo, passei um bom tempo da minha vida fazendo isso e cansei um pouco das limitações do documentário jornalístico [...]. Acho que se valer de outros recursos técnicos, com as técnicas do roteiro de ficção, é algo super válido para buscar produzir outras imagens e criar outras relações com o espectador que não as que estão já linkadas tradicionalmente ao documentário.

    A principal postagem do trailer no Facebook tem inúmeros comentários negativos, como por exemplo: “Será que o pai de família trabalhador que é assassinado tem a opção de usar uma tornozeleira pra voltar pra casa?”; “Documentário sobre vagabundo” e “Quer dizer que o dinheiro do meu imposto serve para qualquer porcaria fazer filme para defender bandido?”. O que você responderia se fosse questionado cara a cara por essas pessoas?

    Vão assistir ao filme que a gente conversa com calma. Se vier xingando e esculhambando não dá para conversar. Se essa pessoa for numa das sessões com debate que estamos fazendo até o dia 13/12 – em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza –, podemos discutir. O objetivo é justamente questionar, problematizar esse julgamento rápido, esse discurso de ódio, criar um ambiente de diálogo em que as pessoas possam se entender. Se depois dessa conversa continuar com a opinião... é isso, é o que acontece. Mas acho que vale a conversa, vale o diálogo. O filme foi feito para isso.

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