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    MIMO 2017: Beleza da diversidade religiosa brasileira e filmes sobre Emicida e Torquato Neto marcam segundo dia

    Híbridos, Os Espíritos do Brasil, de Priscilla Telmon e Vincent Moon, foi o filme mais aplaudido do festival até aqui.

    O Cine Odeon viveu momentos de transe cinematográfico no sábado (11), segundo dia do Festival MIMO de Cinema no Rio de Janeiro, com a exibição do documentário Híbridos, Os Espíritos do Brasil, de Priscilla Telmon e Vincent Moon. O longa é uma ode à multiplicidade religiosa brasileira e foi a produção mais aplaudida do festival até agora.

    Quem esteve em todas as sessões no sábado também se deparou com uma seleção superior em qualidade aos apresentados no dia anterior, marcado pela primeira sessão no Brasil de Na Via Láctea, do cineasta sérvio Emir Kusturica. É possível dizer que todos os seis filmes projetados ao longo do dia foram notáveis em maior ou menor escala, uns bons, outros ótimos ou excelentes. Mérito da curadoria assinada pela produtora, diretora e atriz Rejane Zilles.

    Além de Híbridos, foram exibidos os longas documentais Torquato Neto - Todas as Horas do Fim e Sobre Noiz, e os curtas Entre o Traço e a Luz, BambasCanta Um Ponto. Leia sobre os filmes abaixo.

    CINEMA TRANSCENDENTAL

    Ao falar sobre as características e costumes que definem o Brasil tal como ele é, costuma-se mencionar a diversidade cultural do país como um de seus totens identitários. Na prática, discurso e realidade entram em conflito quando se percebe os esforços de grupos reacionários de tentar impor uma cultura hegemônica, dizer o que é ou não digno de ser chamado de cultura, arte ou religião.

    Neste contexto, um filme como Híbridos, Os Espíritos do Brasil é um deleite não apenas para os olhos e ouvidos, mas também para a alma. Com um primor estético estonteante, a aura do longa-metragem de Priscilla Telmon e Vincent Moon ganha vivas cores polítcas ao valorizar a multiplicidade de práticas religiosas de forma tão poética e instigante, com respeito e reverência de olhares e movimentos de câmera que parecem comungar junto do transe retratado e evitam fetichismos.

    Rodado ao longo de três anos de forma independente, o filme começa e termina com rituais de povos indígenas (como os Xavante, Mehinako e Yawanawá), propondo a leitura de um ciclo de liturgias que aponta para uma ancestralidade pré-portuguesa, e em seguida acompanha outras tradições de festas católicas como o Círio de Nazaré, eventos sincréticos e cultos de candomblé e umbanda. A montagem, sempre precisa, faz cada take tomar apenas o tempo necessário e é usada até mesmo para propor reflexões ricas. Após mostrar uma cerimônia de Toque de Oxum e uma Festa das Ayabás, um corte nos leva para o alto de um monte em Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro, onde evangélicos oram enquanto um ministro prega passagens bíblicas e fiéis experimentam o chamado "batismo no Espírito Santo", experiência tradicional em denominações pentecostais. Ao exibir as semelhanças explicitadas pela forma corporal como os dois grupos, frequentemente vistos como antagonistas, manifestam sua fé, o filme faz um interessante comentário sobre a universalidade da busca por transcendência espiritual que funciona como um pedido de tolerância em tempos tão difíceis.

    Apresentado em um festival dedicado a filmes sobre música, o uso da linguagem sonora é um óbvio objeto de destaque. O trabalho de som explora a potência do som dos tambores e a musicalidade de palavras impronunciáveis, expondo propriedades belas e perturbadoras de sons como o barulho de fogos de artifício e o timbre quase surrealista de uma reza cantada em uníssono. O bom uso do som também se manifesta nas vezes em que os diretores optam pelo silêncio de um centro espírita numa sessão de passes ou pela contemplação da natureza que circunscreve boa parte dos rituais.

    Há alguns paralelos possíveis com o cinema etnográfico de Ron Fricke em Baraka, mas Híbridos tem uma identidade própria, algo que Moon já explorou em seus diversos projetos audiovisuais. Como no revolucionário The Take Away Shows, criado pelo cineasta e familiar aos fãs de música alternativa, os diretores apostam em planos-sequência e partem do micro para o macro com um olhar que valoriza detalhes riquíssimos. A liberdade como a câmera se move também aponta para uma provável boa relação dos realizadores com as pessoas retratadas, algo fundamental para um filme como este funcionar de forma ética.

    Sem cartelas explicativas, entrevistas ou narrção, Híbridos faz um cinema de sangue, suor e lágrimas e serve de bálsamo para o Brasil de 2017. Excelente.

    PRA DESAFINAR O CORO DOS CONTENTES

    Exibido no Festival do Rio deste ano, Torquato Neto - Todas as Horas do Fim voltou ao Cine Odeon no Festival MIMO de Cinema para "entender o pensamento conturbado e a poesia conturbada" da figura retratada, explicaram os diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando quando apresentaram o longa-metragem.

    Anjo torto de vida breve e influência perene, o escritor piauiense esteve ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e os demais tropicalistas no movimento revolucionário que subverteu o cânone da MPB ao revisitar o antropofagismo, abraçar a "baixa" e "alta" culturas e assimilar e propagar influências modernas através do diálogo com o rock. Entretanto, o filme amplia as questões sobre vida e obra do homenageado ao mostrar suas composições para além da Tropicália e suas ocupações para além da música, como seus trabalhos como poeta, jornalista, crítico, agitador cultural, ator e diretor.

    Estruturado em imagens de arquivo e depoimentos, o filme não foge do formato clássico do cinema documental, mas felizmente dribla as características do lado mais formulaico do gênero. Sem "cabeças falantes", mesmo os entrevistados mais famosos aparecem por pouquíssimos segundos, filmados em Super-8 para manter a coerência visual com a textura granulada das imagens de arquivo e explicitar que é Torquato quem está no centro da narrativa. Além das vozes em off, os eventos da vida do artista são representados por cenas de filmes importantes do conturbado momento político e efervescente momento cultural no qual o poeta viveu e produziu suas obras. Cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol, A Família do Barulho, O Bandido da Luz Vermelha, Macunaíma e Bang Bang (1971) ilustram fases da vida do compositor e ganham sentidos novos. Fotos do acervo pessoal da família, algumas delas amassadas ou aparentemente rasgadas, servem para aludir à mente inquieta do retratado.

    Outra decisão criativa acertada dos diretores foi convidar o ator Jesuíta Barbosa para ressucitar cartas antigas e declamar poemas de Torquato, já que o poeta deixou apenas um registro sonoro de sua voz, uma entrevista concedida no final dos anos 1960.

    Para um filme que se propõe a celebrar a vida de uma figura, a ênfase no suicídio de Torquato é muito constante, o que é quase contraditório com a proposta de um projeto como este. É claro que o verso final da trajetória do compositor diz muito sobre sua inquietações em vida, mas as sucessivas alusões em Todas as Horas do Fim ao fato de que o poeta se matou soam repetitivas na estrutura do longa.

    As pérolas da projeção são os trechos dedicados às canções de Torquato, como quando tocam faixas como "Geléia Geral", "Mamãe, Coragem", "Deus Vos Salve a Casa Santa" e "Let's Play That". Entretanto, nenhum momento musical supera a magnética interpretação de Gal Costa para "Nenhuma Dor", acompanhada, entre outros músicos, do violão de Jards Macalé e piano de Wagner Tiso. A performance foi realizada em 1977, cinco anos depois da morte do poeta, como um tributo que foi ao ar no programa Fantástico. Atrás da cantora baiana, um gigante retrato de Torquato em tom pastel com uma expressão sofrida orna o ambiente, enquanto Gal, de vestido e batom vermelho, exalta a intensidade de um artista cuja obra é maior do que sua própria vida e também maior do que as circunstâncias de sua morte.

    SÓ É FELIZ QUEM SABE QUE A ÁFRICA NÃO É UM PAÍS

    Ao lado de figuras como Criolo, Emicida é um dos responsáveis por elevar o rap nacional ao patamar de movimento mais efervescente e contestador da música brasileira recente. Em seu álbum mais recente, "Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa", o rapper paulistano partiu em uma viagem para a Angola e Cabo Verde para imergir na cultura do continente africano, dialogar com a cultura do "Continente Mãe" e produzir o disco, que foi indicado ao Grammy Latino e eleito o segundo melhor álbum de 2015 pela Rolling Stone Brasil.

    Dirigido por Evandro Fióti (irmão do rapper), Ênio César e pelo próprio Emicida, o filme é bastante convencional em sua estrutura. Em determinados momentos, soa mais como um episódio do programa televisivo Pop Estrada do que como cinema, o que reduz o potencial do longa-metragem. Da viagem para a o continente africano, os melhores trechos são quando a equipe do artista vai para a "pesquisa de campo" e conhece manifestações culturais locais, como as Batucadeiras de Cabo Verde, com quem Emicida chega até a cantar junto em uma hora de descontração. Em Angola há espaço para uma figura local refletir sobre as mazelas de seu país em um discurso duro, mas esperançoso, outro destaque positivo do filme.

    Quando se debruça na produção de "Sobre Crianças...", o filme assume uma postura de making of típica de webséries que acompanham lançamentos musicais, o que mostra que a ênfase do longa está mais no conteúdo e na personalidade de Emicida do que em propriamente desenvolver um discurso cinematográfico. Ainda assim, ao se debruçar sobre o processo criativo do músico, Sobre Noiz rende bons frutos, especialmente no retrato da empolgação do ato de fazer nascer do zero uma canção. Para os fãs do rapper e interessados em produção musical, o longa-metragem dá a chance do público testemunhar como é desenvolvido um arranjo, como se cria um beat do zero, como músicos dialogam no estúdio, um viés que também é interessante. O filme é pontuado por cada faixa do disco e não há como não falar no trecho dedicado a "Mãe", uma das músicas mais bonitas do catálogo do rapper e da música brasileira nesta década.

    CURTAS

    Melhor curta-metragem exibido até então, o ótimo Bambas, de Anná Furtado, traz relatos e discussões sobre as mulheres no samba em São Paulo. Com uma fotografia cativante, o trabalho propõe debates sobre o machismo no tradicional gênero brasileiro ao mesmo tempo em que aponta para um futuro esperançoso através das histórias de vida de cantoras e musicistas talentosas. Entre o Traço e a Luz, de Zeca Ferreira, faz um ensaio sobre memória e significados da imagem ao apresentar a obra do fotógrafo Marco Aurélio Olímpio, que registrou imagens belíssimas dos maiores nomes da música brasileira. Bem filmado e montado, Canta Um Ponto, de Luciano Dayrell e João Paulo Silveira, traz um olhar afetivo da tradição do Jongo de Pinheiral, instrumento de cultura e resistência.

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