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    Festival Guarnicê 2017: "Assim como um mau ator pode acabar com o filme, um mau produtor pode destruir também", diz Vania Catani, produtora de O Palhaço e Mate-me Por Favor

    Há quase duas décadas produzindo o melhor do nosso cinema, ela defende a valorização do árduo e incompreendido ofício em conversa com alunos maranhenses de audiovisual.

    Numa tarde de sol em São Luís do Maranhão, cidade em que ocorre a 40ª edição do Festival Guarnicê, a mineira de Montes Claros Vania Catani, fundadora em 2000 da prestigiada Bananeira Filmes, vestiu a capa de superprotetora da profissão e foi falar sobre sua ampla experiência cinematográfica numa masterclass.

    “Não é qualquer um que pode produzir”, ela logo diz, atacando de início a ideia muito propagada de que produtor é aquele que não leva jeito para nenhuma outra função. O problema, ela diagnostica, vem desde as escolas de cinema, onde todo mundo quer ser diretor e o desenvolvimento de profissionais da produção não é estimulado. “Às vezes vão estagiários na minha produtora e pergunto por que eles querem trabalhar lá. Aí escrevem ‘Queria na verdade ser montadora, mas enquanto não rola eu queria fazer produção’. Todos são eliminados.”.

    O grande equívoco

    “Gostam muito de mulher como produtora porque existe um conceito equivocado de que mulher tem uma coisa meio maternal e há o machismo de que ela será uma grande tomadora de conta. Colocam a pessoa que não sabe fazer nada para fazer produção como se fosse só dar meia dúzia de telefonemas, arrumar quentinha, negociar a van, encontrar fita pro cenário... E não é nada disso ou é também tudo isso, mas é sobretudo criar, fazer acontecer – e nada naturalmente, com muito esforço. Tem que ter talento para isso, é vocação também, não é todo mundo que sabe fazer. [...] Espero que as futuras gerações não tratem com ignorância nosso ofício. Até sem ator dá para fazer filme, documentário, mas sem produtor você não faz filme nenhum. [...] Sem produtor você pode ser o [Steven] Spielberg que não vai fazer coisa nenhuma. Igual o mau ator pode destruir o filme, o mau produtor pode destruir também.“

    Início da carreira

    “Foi muito doido. Em Montes Claros eu namorava um músico e organizei um show dele, foi minha primeira produção, eu deveria ter uns 15 anos. Aí passou o tempo, tive filho, meus amigos foram para a faculdade e ganharam a eleição do DCE. Eles tinham dinheiro para umas produções e eu, que não estudava, tinha um trabalho regular como auxiliar de dentista, fazia produção de shows de rock para eles nas horas vagas. Daí fui para a TV e fiquei igual pinto no lixo. [...] Depois fui para a videoarte, documentário, produzi um festival de videoarte muito arrojado que me ensinou muito e quando vi já tinha feito bastante coisa. Tudo isso vendo filme, lendo muito... Estava na TV um dia e toca o telefone, meu primeiro celular, e era o Pedro Bial me chamando para produzir um projeto sobre Guimarães Rosa que ele ia fazer em Minas e alguém tinha me indicado para ser a produtora local. Achei que era sacanagem, alguém passando um trote, mas falei para ele mandar. Chegou o projeto, era verdade e acabei fazendo esse filme com ele, um projeto grande que está completando vinte anos, composto do documentário Os Nomes do Rosa e do filme Outras Estórias. Quando vi tinha virado produtora.”

    Diversidade na indústria

    “Gostando ou não do governo do Lula e da Dilma, para o cinema foi muito importante porque permitiu a inserção de pessoas que não entravam. Gente da minha origem e da origem de vocês era empregada deles, não existia lugar de protagonismo se você não tivesse nascido rico no Rio de Janeiro ou em São Paulo, de preferência de uma família que já fosse de cinema. Era um ofício de elite e ainda acho que seja, mas as políticas descentralizadoras possibilitaram a chegada de novos atores que podem falar de si mesmos. De norte a sul tem gente fazendo. Eu filmo em vários lugares e acho importante não ser bairrista, mas acho importante também que exista a representação e as pessoas tenham a possibilidade de olhar para si mesmas.”

    No meio de duas forças

    “Eu não sou do cinemão comercial, nem do cineminha, surgido há dez anos com essas mudanças. O cineminha me acha mainstream e o cinemão me acha muito louca, então faço carreira solo do meu jeito, fico marginal. Estou sem pares, mas tudo bem. É o destino e estou aqui para falar com todos. Não tenho preconceito com nenhum, o cinema comercial é necessário como indústria para dar emprego, gerar receita, sustentar o fundo setorial... Essa retroalimentação precisa do cinema comercial para existir. E encontro também pessoas e filmes muito interessantes na nova geração. Me sinto estimulada a conviver com ambos.“

    Machismo

    “Comigo não mexem, pois sou patroa, então minha luta é para fazer com que não mexam com as outras. Mas é complicado. É um ambiente machista sim e é um lugar de poder também, não só de poder machista, mas também de poder econômico. Se você observar, as grandes acusações de assédio envolvem os altos cargos, quem ganha mais. Fotógrafo, diretor, pessoas hierarquicamente proeminentes é que geralmente abusam da posição em que estão.“

    Parcerias

    “A única pessoa que está com o diretor nas três fases (pré, produção e pós) é o produtor. [...] Ninguém sabe que fui eu que fiz, nem que existo, mas eu lembro quando era apenas uma ideia. [O Filme da Minha Vida] é meu terceiro com o Selton Mello e ele tem uma conversa comigo muito boa. Ele é o diretor, eu sou a produtora, mas sabemos que o filme é nosso. Tem coisas lá que eu sugeri e ninguém nunca vai ficar sabendo, mas não importa quem foi. O que importa é que a gente faça o melhor filme. [...] Gosto especialmente de primeiro e segundo longas, se pudesse faria ao menos um por ano. E aí se for bom, gostoso e a gente for feliz, seguimos fazendo. Tive essa sorte com o Selton, por exemplo, e vou fazer o outro da Anita [Rocha da Silveira, de Mate-Me Por Favor] agora também. Às vezes dá certo repetir, às vezes é melhor seguir cada um para um lado e vamos tentando.”

    Fetiche de set

    “Quase todas as pessoas que fazem cinema chegam com um fetiche totalmente idealizado do set, como se ele fosse o filme. E não é, pelo contrário. Esse do Selton filmamos até bastante, umas oito semanas, mas eu estou trabalhando nesse filme desde 2013. O set ganha uma idealização quase sagrada, mas não dá para esquecer que tem gente trabalhando antes e gente trabalhando depois. O set não faz o filme. Você pode fazer a filmagem mais sublime do mundo, mas alguém te levou até ali e alguém vai pegar o material e levar adiante até o lançamento. O set é só uma passagem. Algumas pessoas que trabalham nele são quase arrogantes e eu falo: ‘Esse salário que você tá ganhando, alguém trabalhou anos e anos para levantar esse dinheiro’.”

    Em busca da perfeição

    “Prefiro refazer o que não ficou bom e gastar mais dinheiro do que lidar com um negócio ruim pela posteridade. [...] Gosto do cinema justamente porque tem uma coisa de permanência. Claro que também fiz filme ruim, também fiz filme medíocre e provavelmente farei outros, mas tenho certeza que alguns filmes que fiz, daqui a cinquenta, cem anos, estarão catalogados, vão permanecer e jamais acabar.”

    Olhar para o passado

    “O cinema brasileiro não foi inventado agora com o Fundo Setorial, nem com o governo Lula, ele existe há muitos anos e muita gente trabalhou para que pudéssemos estar aqui hoje. Sinto uma soberba, uma arrogância, uma certa ignorância da juventude. Agora está tudo bonitinho, tem escola, tutoria, mil recursos favorecendo a formação de grandes profissionais que poderão trabalhar com conforto. Recomendo que conheçam profundamente o cinema brasileiro. Não estou me excluindo da ignorância, também estou tentando compensar essa lacuna. Não tive escola, vejo filme todos os dias e vou tentando aprender dessa maneira. Existem pérolas, coisas lindas, coisas frescas, uma originalidade que dá orgulho, assim como dá orgulho o pertencimento de saber que somos parte de algo maior. Não dá para achar que o cinema brasileiro começou com o Festival de Tiradentes, o próprio Guarnicê tem 40 anos...”

    Em defesa do streaming

    “Queria que a gente fizesse uma Netflix do cinema brasileiro, mas a galera mais xiita é totalmente contra, prefere passar na sala mesmo que seja para 12 pessoas... Eu sou total do streaming. Todo mundo está fazendo isso, mas aqui no Brasil estamos empacados. Por exemplo, todos os filmes nacionais incríveis que estão no Youtube em condições péssimas poderiam estar numa plataforma da Cinemateca Brasileira, que tem todas as matrizes. “

    Próximos projetos

    “Estou nessa de fazer os filmes das meninas, vou dar uma priorizada nas realizadoras. Estou com uma boa safra para desenvolver, mas também não vou fazer só isso. Quero também mexer com uma deficiência do cinema brasileiro, que é a de que os projetos são muito autorais, o próprio diretor escreve e isso é péssimo para os roteiristas. É uma coisa que vem desde o Cinema Novo e eu acho prejudicial, o único que foge desses termos é o cinema comercial e é uma pena, pois ele é medíocre.”

    A dor e a delícia

    “Nunca contei meus filmes, vamos fazendo até ter forças. Não é fácil, é um inferno. Muito dolorido, muito solitário, é muita burocracia. Tem dias que quero morrer, prometo que nunca mais vou fazer de novo, mas quando apaga a luz e vejo o negócio acontecer... Você esquece tudo, só lembra como é bom, como é lindo e fica muito orgulhoso, é uma loucura. É igual parto, no final você esquece que doeu e já quer ter outro filho.”

    Vania, jurada da competição do 40º Guarnicê, recentemente produziu Zama, longa ainda inédito de Lucrécia Martel, e lança em junho Deserto (leia a crítica) e em agosto O Filme da Minha Vida.

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