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    Festival Guarnicê 2017: O Tempo Feliz que Passou coloca o interior da Paraíba na tela em mais uma noite de curta animado como grande destaque

    Boa Noite, Charles conquista o público maranhense.

    Lauro Vasconcelos/Festival Guarnicê

    Um novo dia repleto de sessões em São Luís do Maranhão, mais uma noite de casa cheia no Teatro Alcione Nazaré. O terceiro bloco da mostra competitiva do 40º Festival Guarnicê reservou ao público ficções bem próximas do tom documental e um documentário com ares de ensaio. Registros bastante pessoais, cidade natal como locação, ação entre amigos, direção de irmãos. Realizadores se colocaram na tela, oferecendo ao público a possibilidade de identificação. Brutalidade policial, filmagens caseiras, projeto interminável, intrigas familiares. Quem nunca?

    Lauro Vasconcelos/Festival Guarnicê

    Retalho, de Hannah Serrat – Em seu primeiro filme, dedicado aos “pequeníssimos realizadores”, a cineasta monta registros caseiros de José Marcos Pedrozo, feitos desde os anos 1990 e disponibilizados pelo próprio em um canal no Youtube. A partir de celebrações familiares e filmagens com (des)foco na vizinhança, ela reflete a respeito de sua relação com o cinema, o estilo de Pedrozo, a sensação de intimidade esquisita pelo testemunhar do crescimento de seus filhos , inquietações particulares. Base do trabalho, a edição é muito boa, assim como a seleção de imagens sinceramente pitorescas, tão fortes que se sustentam mesmo sem som. Apesar da pertinência dos comentários, no entanto, a narração se choca muito com o que é visto na tela, indo pelo caminho da monotonia enquanto o festeiro clã Pedrozo transborda agitação. Tão distante que às vezes deixa um estranho gosto de etnocentrismo nos comentários, a voz de Hannah faz o pretenso “filme feito de encontro” se assemelhar à pororoca.

    Boa Noite, Charles, dos Irmãos Carvalho – “Este é um filme de ficção”, o público é avisado. Do mesmo modo que Fargo é baseado em fatos reais? Pouco importa. Sonho e pesadelo, documentário e não, animação e live-action, o excelente curta dos irmãos Marcos e Eduardo Carvalho conjuga de forma sensacional produção e bastidores, indo da comédia ao trágico, do suspense ao alívio, de 2012 a “2019” com e por uma animação stop motion em massinha feita no quarto dos dois no Morro do Salgueiro, zona norte do Rio de Janeiro. Demonstrando um consistente domínio das possibilidades do audiovisual, suficiente para driblar limitações de recursos, e vontade de romper barreiras invisíveis, eles revertem expetativas usando cartelas para comentários espirituosos ao invés da mera descrição de cenas não gravadas e encaminham as duas intrincadas histórias de forma tão envolvente que a pergunta “o que é fantasia e o que é real?” se dissolve. O pavor de Charles é tão genuinamente humano quanto a fúria do criador é mítica. Destaque ainda para a canção original “Não me chame de imaginação”, composição dos realizadores.

    O Olho do Cão, de Samuel Lobo – Como o diretor disse na apresentação, é um filme sobre a revolta, o sentimento que toma os habitantes atuais do Rio de Janeiro. Bastante carioca, tendo o bairro do Rio Comprido como locação, o drama narra a história de parceria entre um jovem e a cachorra Buck Jones, salva por ele dos maus tratos. Quando está nesses dois personagens, que encontrarão destino trágico pelas mãos de truculentos policiais, o filme funciona bem, a conexão facilitada por expressivos closes em Buck e a agitação no sangue devidamente preparada com canções das Mercenárias e Negro Leo. O problema está no que vem antes, as sequências de estabelecimento do grupo de amigos dentro do padrãozinho maconha-cerveja-festa na zona sul. As interpretações não transmitem a naturalidade que o texto sugere e o tempo de tela dado à principal personagem feminina jamais se justifica. A opção pelo protagonismo universitário classe média boêmio, que comenta sem qualquer intimidade os tiros no morro vizinho, e o próprio desenrolar dos fatos (brutais sim, mas fichinha perto do que aconteceria com negros na mesma situação), culminando numa improvável sequência praiana, deixam no ar a dúvida se não é tudo uma grande ironia. Melhor que fosse.

    O Tempo Feliz que Passou, de André da Costa Pinto – Feito com orçamento de curta, o longa mostra Graça (Guta Stresser) voltando para casa, em Barra de São Miguel, Cariri paraibano, por conta da morte da mãe, com quem não tinha uma relação saudável. Lá reencontra tias, prima, irmãos e pai, uma família marcada pela repressão sexual. André tenta compensar a falta de dinheiro com a segurança de um elenco experiente (Luci Pereira, Cláudia Lira, Arly Arnaud, Nanda Ziegler) e enquadramentos incomuns que às vezes realmente disfarçam dificuldades de iluminação e direção de arte – incomoda bastante, porém, a constante instabilidade nos planos mais simples. Sua história, no entanto, têm falhas que vêm desde o roteiro, que não é capaz de alinhar as tramas paralelas dos personagens de forma orgânica. Nem mesmo individualmente todas as narrativas funcionam, com a própria trajetória da protagonista Graça se perdendo no mar de hipocrisias e desejos.

    O AdoroCinema viajou a convite do Festival Guarnicê.

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