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    Mostra de Tiradentes 2017: Direitos trabalhistas, pornochanchada e metalinguagem

    Modo de Produção, de Dea Ferraz; Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava, de Fernanda Pessoa; e Subybaya, de Leo Pyrata, foram exibidos no Cine-Tenda na noite de quarta

    A noite de quinta-feira (26) na 20ª Mostra de Tiradentes foi a melhor do festival até aqui, com a exibição de três longas-metragens: Modo de Produção (na Mostra Olhos Livres), de Dea Ferraz; Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (na Mostra Aurora), de Fernanda Pessoa; e Subybaya (na Mostra Aurora), de Leo Pyrata.

    "Como vou sustentar minha família?"

    O cinema assume a missão de dar rosto e voz aos mais vulneráveis em Modo de Produção, documentário rodado por Dea Ferraz em 2013 cuja urgência de sua mensagem se amplifica ao ser lançado no ano de 2017, no momento em que setores reacionários da política e sociedade civil empenham-se para enfiar goela abaixo da população uma reforma da Previdência que leva números e cifras em consideração, mas não o impacto nas vidas humanas.

    Rodado no Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca, na região metropolitana de Pernambuco, o longa acompanha a rotina da instituição, que atende trabalhadores em busca de auxílio jurídico, examinando a desproporcionalidade de forças na relação trabalhador-Estado e Justiça. Lá, pessoas de fala simples e de semblantes que expressam da revolta à desesperança, contam suas histórias. Por muitas vezes parece que eles estão em um consultório médico, mas o doente aqui é o sistema, não as pessoas.

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    "Como vou sustentar minha família?", pergunta um homem que recebe R$280 por quinzena no corte de cana-de-açúcar. Em outro relato, que se desenrola lentamente, um homem descobre seus direitos pela primeira vez. Após esse trabalhador relatar sua rotina de trabalho, o advogado aponta todas as irregularidades a qual ele foi submetido — expediente de domingo a domingo, jornadas de trabalho que vão de 7h às 21h, inexistência de férias. A câmera filma o olhar perdido desse trabalhador numa tomada comovente.

    Diante de tantos dramas, destaca-se a figura cativante de Lindalva, uma mulher que exala força e simpatia ao sindicato ao instigar o pensamento crítico sobre temas como gênero e solidariedade. Se Modo de Produção tivesse apenas Lindalva já valeria a pena.

    Boa parte do longa-metragem de 75 minutos se passa dentro de salas assépticas, onde a estética das imagens não sobressai, mas as demais cenas se destacam pela atenção dada aos enquadramentos, como os que ressaltam o contraste entre o movimento nas ruas e a espera daquelas pessoas. A captação de som, entretanto, poderia ter sido melhor.

    "A moral se ajeita conforme a conveniência"

    Edir Macedo pode ter conseguido tranformar Os Dez Mandamentos - O Filme na maior bilheteria do cinema nacional após representantes da Igreja Universal terem inflado a vendagem de ingressos, mas algumas décadas antes, quando o perfil do brasileiro era ainda mais religioso e moralista, não eram adaptações de histórias bíblicas que faziam sucesso com o público.

    Em Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava, a diretora Fernanda Pessoa examina um dos gêneros mais comercialmente bem sucedidos e negativamente avaliados pela crítica da história do audiovisual brasileiro, um produto tipicamente nacional para o qual o Brasil parece ter torcido o nariz após sua derrocada.

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    Não espere entrevistas com David Cardoso, Helena Ramos, Carlo Mossy ou Nicole Puzzi. Este filme se insere na mesma categoria de documentários como Cinema Novo e A Música Segundo Tom Jobim, limitando-se ao uso de imagens de arquivo e com foco total na montagem enquanto recurso narrativo e argumentativo.

    Utilizando apenas imagens de filmes lançados na década de 1970, Pessoa faz uma releitura daquelas obras e mostra como, por baixo dos panos de mero entretenimento erótico, havia naqueles filmes a discussão de temas controversos que conseguiram driblar a própria censura do regime militar. Há tiradas sobre luta de classes, alienação das elites, críticas ao ideal de progresso, cutucadas no autoritarismo ditatorial vigente na época e, obviamente, comentários sobre os novos ideais de comportamento (bem como a relutância a essas novas formas de se expressar sexualmente).

    O filme não funcionaria se o trabalho de edição não tivesse sido tão bom, conferindo à essa colcha de retalhos um ritmo agradável, pautado também por cenas de respiro  — como quando toca a versão de Gal Costa para a canção "Sua Estupidez", de Roberto Carlos  —, fundamentais para que um filme do tipo não soe maçante.

    Cinema pós-moderno (?)

    Uma mulher jovem e branca vinda de uma estruturada família de classe média mineira passa por uma jornada de autodescoberta e liberação sexual em um filme dirigido por um diretor homem e branco. Isso é problemático? "Para que tá feio"?

    A comédia autorrefretente Subybaya examina as possibilidades (ou impossibilidades, no caso) da questão da representatividade feminina sob o male gaze. O filme mostra um cinema quase pós-moderno, feito de esquemas tradicionais (cartelas com aspas de grandes pensadoras e pensadores, eixo narrativo focado na jornada linear de uma protagonista) e de subversões de linguagem (diálogo com a estética dos videoclipes, glitches, metalinguagens).

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    Clarice, a personagem principal, começa o filme como um corpo estranho numa orgia vaporwave, onde não se envolve com ninguém. Após receber os conselhos de uma amiga para perder as inibições, ela gradualmente descobre o sexo casual com estranhos e passa de parceiro por parceiro até se deparar, numa casa noturna, com um predador sexual que planeja dar um Boa Noite Cinderela nela. Pausa.

    O personagem do predador é interpretado pelo diretor, Leo Pyrata, para o furor de um grupo de feminstas que entram em cena em Subybaya questionando, dentro do filme, os próprios mecanismos do longa-metragem, atacando o "esquerdo-macho" que tem a audácia de querer usar das questões da mulher para se capitalizar artisticamente  — há inclusive críticas à noção do filme ser bem recebido num festival de cinema, veja só. As sequências são divertidas, mas resta a dúvida: A intenção era fazer autocrítica, mea-culpa ou apenas pedir para que o público desconsidere tudo que estava ruim no filme até então?

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