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    A hora, a voz e a vez delas: Protagonismo feminino e assédio são pautas na Mostra de Tiradentes 2017

    Híbrido de documentário e drama Baronesa e documentário de utilidade pública Precisamos Falar do Assédio foram os principais filmes de segunda-feira (23).

    A quarta noite da 20º Mostra de Cinema de Tiradentes foi marcada pela exploração de diferentes enfoques narrativos possíveis do cinema documental.

    Ao longo da segunda-feira (23), na cidade histórica de Tiradentes foram exibidos os filmes Precisamos Falar do Assédio (Mostra Sessão-Debate), de Paula Sacchetta; Baronesa (Mostra Aurora), de Juliana Antunes; e A Destruição de Bernardet (Mostra Olhos Livres), de Claudia Priscilla e Pedro Marques. Há mulheres na direção de todos esses filmes, evidenciando o caráter de valorização da produção audiovisual feminina proposto pela Mostra de Tiradentes neste ano.

    Elas por elas

    A Mostra Aurora, "dedicada a novos realizadores que proponham novas formas de estética", iniciou sua 10º edição em Tiradentes com a exibição de Baronesa, filme que dilui fronteiras ao mesclar drama e documentário de forma tão intrincada que mal é possível notar onde começa um aspecto e termina outro. Seriam os diálogos encenados ou não? O que é visto na tela ocorreu com as pessoas reais ou apenas com as personagens? Essas dúvidas constituem dos elementos mais instigantes do longa-metragem de estreia de Juliana Antunes.

    Ao longo dos 75 minutos de projeção, a cineasta, que passou seis meses num bairro da periferia de Belo Horizonte trabalhando no filme, apresenta um olhar honesto e livre de estereótipos da mulher negra e até da própria periferia em si, completamente diferente do que aquilo que se habitou a chamar de "favela movie" costuma mostrar.

    Divulgação

    No enredo do filme, acompanhamos a vida de Andreia (Andreia Pereira de Sousa), uma mulher que se divide entre a atividade de manicure e o eventual tráfico de drogas, e Leid (Leidiane Ferreira), mãe de quatro crianças que lida com a ausência do marido detento. Obstinada, Andreia quer deixar o perigoso bairro onde vive para fugir da guerra entre traficantes que tanto lhe aflige e planeja construir sozinha uma nova casa num lugar melhor.

    Com o naturalismo expresso no modo de falar, vestir, viver e nas corporalidades dessas heroínas da vida cotidiana, o filme foge de um olhar espetacularizado da violência e apresenta mulheres que são capitãs de suas próprias vidas. Elas são vistas em conversas divertidíssimas sobre maternidade e masturbação, e outras mais pesadas, como quando falam de traumas, abusos e sobre a falta que sentem de seus entes ausentes.

    Talvez algumas cenas se extendam mais do que deveriam, prejudicando um pouco o ritmo do filme. O uso excessivo de planos fixos também pesa nesse sentido, mas os méritos do trabalho superam os poréns.

    Filme de terror

    Por definição, Precisamos Falar do Assédio, filme exibido na mostra Sessão-Debate da Mostra de Tiradentes, é um documentário. Entretanto, também é possível tomar a liberdade poética de classificar a obra como um filme de horror no qual o monstro não morre no final ou como um drama dos mais devastadores.

    A proposta da cineasta Paula Sacchetta é simples. Entre os dias 7 e 14 de março de 2016 — na semana que se comemora o Dia Internacional da Mulher —, uma van adaptada para servir de estúdio de filmagens parou em diferentes lugares do Rio de Janeiro e São Paulo, dos bairros mais abastados à regiões periféricas.

    Com o objetivo de coletar depoimentos sinceros de mulheres de todas as idades, credos, cores e classes sociais, as 140 participantes do projeto tiveram a oportunidades de abrir suas caixas de pandora pessoais dentro da van-estúdio sozinhas, sem a interlocução da diretora, e falaram sobre vezes em sentiram na pele as garras da misoginia, relatando casos de violência, moral, física e sexual. O corte final do longa exibe 26 depoimentos de mulheres de 14 a 85 anos de idade. Algumas escolheram preservar suas identidades usando máscaras e/ou pedindo para que suas vozes fossem alteradas na edição.

    Diante do progresso das discussões feministas no Brasil e no mundo, Precisamos Falar do Assédio assume uma postura de urgência abordando um tema que já deveria ter sido explorado de forma clara e justa no debate público há muito mais tempo. O filme é como um volumoso grito no megafone impossível de ignorar.

    Divulgação

    De estrutura minimalista como os documentários Últimas Conversas e As Canções, mas sem as mesmas interferências e mediações por parte da realizadora, o filme mostra as depoentes escancarando lembranças dolorosas e íntimas.

    "A gente prefere andar na rua e ver um demônio do que ver um homem", diz uma delas. Outra conta que mudou de cidade, para o deboche de alguns amigos, após ter experimentado o pânico de ser observada tomando banho na favela onde morava. Uma senhora octagenária relata um caso de estupro sofrido décadas antes que foi descredibilizado por seu marido. Uma adolescente conta que passou a usar apenas roupas largas para não olharem para seu corpo na rua. Uma jovem lésbica conta em prantos — num dos depoimentos mais chocantes entre tantos depoimentos chocantes — que se sente sem alma após ter sofrido um estupro corretivo anos antes por alguém que ela sequer consegue lembrar quem foi. "É como se sobrasse só a carcaça de mim", diz ela. Após esse depoimento, escutamos o barulho da porta da van se abrindo e é possível ouvir Sacchetta tentar consolar a jovem, dizendo que ela ainda pode buscar ajuda psicológica para lidar com esse trauma.

    Algumas experiências relatadas são mais extremas que outras, mas a intenção é mesmo essa: Mostrar como todos esses casos são galhos de uma mesma árvore regada a séculos de machismo. O longa também lança luz sobre o processo de culpabilização de vítimas e sobre como até a polícia, mesmo nas delegacias para a mulher, falha em proteger essas cidadãs.

    Diante de uma estrutura fílmica tão restrita, que já causou certa resistência na imprensa especializada, é possível analisar alguns aspectos estéticos de um filme cuja forma está destinada a deixar o conteúdo em primeiríssima importância. Com apenas uma câmera, um mesmo enquadramento e um fundo totalmente preto as mulheres são vistas em primeiro plano, como num retrato. O espectador está diante de uma vida humana e escuta suas palavras ("Precisamos falar..") sem distrações. A projeção chega a causar efeitos óticos em quem assiste o filme quando são efetuados cortes secos na imagem para uma tela totalmente preta. Na escuridão total da sala de cinema, os contornos daquelas mulheres continua marcado na retina do espectador, assim como os fantasmas do passado ficaram marcados nas vidas delas. Os próprios sons abafados do lado de fora do veículo e até o uso de máscaras por quem não quer se identificar, ganham interpretações possíveis.

    Provocações

    Exibido na mostra Olhos Livres, dedicada a filmes descritos pela curadoria como "trabalhos marcados por curto-circuitos nas abordagens", o documentário A Destruição de Bernardet é uma obra curiosamente leve e bem-humorada sobre uma das principais figuras intelectuais relacionadas ao cinema brasileiro, o professor, escritor, crítico de cinema, diretor, roteirista e ator Jean-Claude Bernardet.

    No filme, o intelectual franco-belga-brasileiro se desconstrói diante das lentes dos diretores Claudia Priscilla e Pedro Marques, abordando aspectos de sua trajetória pessoal e intelectual, mas, como não poderia deixar de ser, tudo é apresentado numa estrutura nada convencional.

    "Eu não me acho um personagem interessante", diz Bernardet no filme, no qual ele se confronta com sua própria mortalidade, faz provocações acerca do conceito de suicídio, entrevista a si mesmo, discute conceitos de Sartre, argumenta que nossa linguagem está obsoleta e come borboletas (sim, isso mesmo).

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