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    Cine Ceará 2016: 'Virou moda ser nazista e fascista', diz o pesquisador do excelente Menino 23

    Sobre o Brasil de ontem. Muito embora esse quarto dia temático sobre segregação racial tenha revelado a atualidade e a urgência de se refletir sobre o tema.

    O quarto dia de Cine Ceará 2016 foi marcado por uma discussão de extrema relevância e atualidade: segregação racial. E o debate nas telas se deu com muita maturidade, mesmo quando sem grande sofisticação cinematográfica. Ao menos até o quarto filme, quando a noite terminou com sessão mais animada da 26ª edição do festival cearense.

    Vidas roubadas

    O grande filme da noite foi mais que uma reflexão, uma porrada! Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil relata um caso chocante de escravidão nos anos 1930.Uma família de empresários proeminentes no interior de São Paulo iam ao Rio de Janeiro "higienizar" orfanatos, levando consigo meninos negros para exploração. E o contexto ajudava, com a eugenia institucionalizada pelo Governo Vargas.

    "Virou moda ser nazista e fascista", diz o professor e historiador Sidney Aguilar, autor da tese de doutorado que deu origem ao documentário. Fora de contexto, a frase suscita dúvida sobre o tempo a que se refere. "Essas pessoas são um espelho da sociedade daquela época", contextualiza o diretor Belisario Franca. Porém, os ataques a Menino 23 no século 21 (e outras barbaridades recentes) mostram que a frase de Aguilar é perfeitamente aplicável aos dias atuais.

    O outro lado foi apresentado na última semana pelo jornal O Globo. Na matéria, um herdeiro da família escravista que há anos ataca a tese como "sensacionalista e oportunista" explica: "O Sérgio era simpatizante do nazismo, frequentava exposições com o gado marcado e ninguém reclamava. No início não havia a visão que temos hoje do nazismo. Quando Hitler começou a fazer as loucuras dele, o Sérgio imediatamente parou de usar a marca", defende Mauricio Rocha Miranda.

    O problema é que a tese de Aguilar apresenta provas contundentes de que a exploração dos meninos aconteceu até meados de 1942! Então, Adolf Hitler já mostrava ao mundo seu poder destrutivo. Mas são documentos que comprovam que a família Rocha Miranda passou a ser proibida de sua ideologia (e, consequentemente, seus atos) depois que Getúlio Vargas se uniu aos aliados na Segunda Guerra Mundial. Ou seja, nenhuma ética envolvida.

    Aliás, não há absolutamente nada que justifique a exploração de um indivíduo. Quanto mais roubar uma infância. Aos que se preocupam apenas consigo, com a imagem gloriosa de um nome, fica a frase de uma estudiosa em dado momento de Menino 23: "A elite não perde nunca." Que se dê a reflexão e todos se questionem sobre quando uma parcela favorecida da soeciedade nega os direitos do outro — independente de respaldo federal. 

    Voz às minorias

    Fotograma abriu a noite como a voz do realizador Caio Zatti: delicada, sensível, escondendo — e revelando — certa poesia. Felicíssimo em seu cinema ensaístico, "focado na palavra", ele e o codiretor Luís Henrique Lima remontam ao premiadíssimo O Som ao Redor (e ao combatente cinema pernambucano atual como um todo) ao explorar as barreiras físicas do crescimento imobiliário de Recife para ilustrar a forte exclusão que assola a cidade. Lírico, verborrágico, Fotograma nunca deixa de ser objetivo e compreensível.

    Índios no Poder já tem um formato convencional e um discurso claro como a sua meta: dar voz ao povo indígena. Sem representação no Congresso Nacional desde a morte do combativo Mário Juruna, e nem mesmo em órgãos de igualdade racial (restrito aos negros), os verdadeiros nativos brasileiros enfrentam constantes massacres e a indiferença geral, especialmente da imprensa, seletiva. Eis a denúncia de Rodrigo Arajeju.

    Assim, o autoproclamado aventureiro no cinema se mostra tão ou mais relevante que muitos cineastas de ofício. Com uma câmera na mão e muito boa intenção, o brasiliense de ascendência indígena negada pela própria família invoca urgência ao tratar o tema e põe os índios a falar, brigar pela sua essência. Quando tem o microfone em mãos, nos festivais que percorre, demonstra calma e firmeza para defender essa causa tão nobre. Ele não quer dinheiro, glamour ou sucesso. Ele quer justiça. É o que torna um documentário simplório uma obra inevitavelmente importante.

    Comunhão afrobrasileira

    Do Outro Lado do Atlântico fez uma sessão realmente especial. Os diretores e roteiristas Márcio Câmara e Daniele Ellery compareceram ao Cine Teatro São Luiz acompanhados de grande parte dos entrevistados, contagiando a exibição com gritos e palmas. O clima de alto astral seguiu para além da sala escura, numa festa temática africana realizada no Centro de Fortaleza.

    E o mais curioso é que essa vibração positiva até combina com o documentário. O filme conta a história de jovens africanos lusófonos que vêm ao interior do Ceará para estudar na Universidade de Redenção — primeira cidade no país a libertar os escravos. Apesar do acontecimento histórico e da grande profusão de negros no Brasil, os estudantes são surpreendidos ao enfrentar o preconceito.

    Essa situação vem à tona de forma amena. Ellery e Câmara somente pincelam sobre os efeitos de tal discriminação, não investigam as causas e se atêm aos modos como essa gente solar contorna o preconceito num país do outro lado do Atlântico. Assim, predomina a superação. E se justifica o clima de celebração dos personagens ao se verem, durante a sessão, no simpático documentário.

    Hoje no Cine Ceará 2016

    Os curtas Uma Família Ilustre, de Beth Formaggini, e Noite Escura de São Nunca, de Samuel Lobo, abrem o quinto e penúltimo dia de mostra competitiva no 26º Cine Ceará. Depois, dois longas que concorrem na ibero-americana: o documentário mexicano rodado em Cuba Casa Blanca, da polonesa Aleksandra Maciuszek, e a ficção nacional Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, do cearense Petrus Cariry.

     

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