A celebração de expressões artísticas do Maranhão e o discurso vivaz do "cineasta mais proibido do cinema brasileiro", Neville D’Almeida, marcaram a primeira noite da edição deste ano do tradicional Festival Guarnicê de cinema.
A solenidade de abertura do festival, que chega a sua 39ª edição em 2016, foi realizada no belo e quase bicentenário Teatro Arthur Azevedo, no Centro Histórico da cidade de São Luis, na noite de segunda-feira (06).
De início, a cantora Cecília Leite animou a cerimônia com um pocket show em homenagem ao cantor, compositor e percussionista maranhense Papete, morto no último dia 26 de maio. "Seu legado, seus tambores e sua voz fizeram ecoar no mundo a força da cultura do Maranhão", disse a artista. Canções como "Maranhão, Meu Tesouro, Meu Torrão" foram acompanhadas de palmas pelo público presente.
Durante abertura, organizadores, apoiadores e patrocinadores se revezaram com a palavra para realçar o caráter tradicional do Festival Guarnicê — que teve sua primeira edição em 1977 quando se chamava Jornada Maranhense de Super 8 — e seus valores de incentivo e propagação da cultura audiovisual no estado e do país. Foi ressaltado ainda, sanando a possível curiosidade de não-ludovicenses, que a palavra Guarnicê está relacionada à tradição de preparação para a festa do Bumba-meu-boi.
Representando o governo do Estado, Celso Brandão, secretário de adjunto de Economia Criativa da Sectur e diretor do Teatro Arthur Azevedo fez questão de destacar que a gestão atual priorizou incluir o Festival Guarnicê programação oficial do estado do Maranhão.
Após protocolares agradecimentos, o diretor Neville D’Almeida e a atriz Juliane Araújo subiram ao palco para apresentar o drama A Frente Fria Que a Chuva Traz.
"É uma emoção muito grande estar aqui no Maranhão. É uma emoção muito grande estar aqui com vocês", disse o cineasta, grande homenageado do 39º Festival Guarnicê de Cinema.
Em seu discurso, o diretor enumerou os longas-metragens que assina que farão parte de uma mostra especial do festival e falou sobre os problemas que enfrentou por conta das temáticas que abordou nesses projetos.
"Dama da Lotação, Rio Babilônia, Os Sete Gatinhos, Navalha na Carne. Quero dizer que todos esses filmes foram proibidos, todos esses filmes foram censurados, todos esses filmes foram mutilados", revelou o cineasta, que escreveu seu nome na sétima arte nacional apresentando jornadas de personagens transgressores marcados pela devassidão, às margens de convenções morais, escancarando hipocrisias comportamentais da sociedade brasileira.
Eu comecei minha carreira no mesmo ano em que houve um golpe, uma ditadura militar no Brasil. Passei por esses momentos todos e aconteceu comigo de ser o cineasta mais proibido do cinema brasileiro de todos os tempos", afirmou. "Não é nenhuma glória. Não é nenhuma honra, mas é um momento de afirmação de que o mais importante para o artista é, a ferramenta do artista, em qualquer arte ou qualquer meio, é a liberdade."
Ao falar sobre A Frente Fria Que a Chuva Traz, Neville definiu o longa como "uma metáfora sobre a sociedade brasileira, sobre o momento em que vivemos, um momento em que a classe dominante acha que o dinheiro pode comprar tudo". Em uma ponderação, o diretor disse que "o dinheiro não compra a sensibilidade, o dinheiro não compra a alma, o dinheiro não compra o talento, o dinheiro não compra a ética". "O dinheiro não compra a arte, não é?", complementou Juliane Araújo. "Só aquelas dos museus", respondeu um bem humorado Neville, levando risadas para a plateia.
Com a palavra, Araújo enalteceu o trabalho do diretor e disse que o cineasta ajudou a trilhar novos caminhos seguidos por gerações futuras. "O que a gente tem hoje como ator, como profissional de cinema, deve-se muito a ele", afirmou. "É uma gratidão imensa estar aqui do lado do Neville. Fazer parte de um filme de Neville é fazer parte de algo maior."
Depois de terminar seu discurso, Neville foi aplaudido de pé por quase um minuto inteiro.
A Frente Fria que a Chuva Traz
O mais recente trabalho de Neville D'Almeida é o primeiro longa-metragem do diretor — que teve uma prolífica produtividade na década de 1970 — lançado no século XXI.
Para deixar o extenso hiato para trás, o cineasta decidiu adaptar para as telonas a peça homônima escrita por Mario Bortolotto, que também atua no filme. No passado, o realizador obteve resultados memoráveis adaptando textos do dramaturgo Nelson Rodrigues em A Dama do Lotação e Os Sete Gatinhos.
No drama de alta voltagem A Frente Fria Que a Chuva Traz, o público se depara com uma fauna de personagens odiáveis: jovens ricos ensimesmados confinados mentalmente em uma babel de vícios e desvirtudes. A trama, que se passa em um só dia, acompanha os preparativos e a execução de uma festa na lage de uma casa no morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, um dos mais fetichizados pela elite carioca.
Flavio Bauraqui vive Gru, o dono da casa. Ele é um homem negro e pobre que aluga sua residência para os festejos intermináveis regados a toda sorte de droga lícita e ilícita da burguesia branca da zona sul da capital fluminense. Apesar de detestá-los, Gru sente certa inveja da vida luxuosa que os jovens tem "no asfalto" e cobiça as mulheres que frenquentam sua casa (que o desprezam sexualmente).
O anfitrião do evento é o petulante Alisson, interpretado por um inspiradíssimo Johnny Massaro, que acredita que repetir "a gente paga em dobro" serve para remediar todos os males e faz com que todas as portas lhes sejam abertas. Espeto, interpretado por Chay Suede, é quem garante o suprimento de entorpecentes a granel para a festança do grupo.
A bússola do filme, entretanto, é a personagem de Amsterdã, encarnada com maestria na atriz Bruna Linzmeyer. Junkie por definição e prostituta pela necessidade de sustentar sua adição, a personagem é a única pessoa pobre do círculo de amigos e, passando por um estado de convulsão pessoal e existencial, serve para apresentar os melhores dilemas do filme. É ela quem se destaca no meio dessa trupe que "tem a aparência certa e mais porr* nenhuma".
Amparado numa verborragia vulcânica, o filme traz diálogos que, embora soem exagerados em determinados momentos, servem proveitosamente a uma narrativa sobre excessos. É inevitável pensar que algumas falas poderiam ter soado mais naturais, mas isso não prejudica muito o filme.
Num filme que trata sobre gentrificação, uma sacada inteligente foi o uso do mashup produzido por João Brasil que mescla o beats eletrônicos de "Summer", de Calvin Harris, com "Sou Foda", dos funkeiros Os Avassaladores em uma espécie de vibe "Ibiza encontra Furacão 2000".
Outro grande trunfo do longa é a participação de Michel Melamed (que também colaborou no roteiro) no hilário papel do cantor de sertanejo Raposão, que se refere a si mesmo na terceira pessoa e confunde a fama que tem com uma pretensa relevância artística não alcançada.
Hoje no Guarnicê
Nesta terça-feira começa a mostra competitiva de curtas e longas. Entre as sessões agendadas está a de O Signo das Tetas, de Frederico Machado.