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    Tiradentes 2015: `sucessor` de Zé do Caixão credita visão infantil do folclore a Monteiro Lobato

    Saci, lobisomem, a 'loira do banheiro'. Rodrigo Aragão estreia filme coletivo, com participação de José Mojica Marins na direção, sobre as lendas brasileiras em versão 'gore' na mostra mineira.

    Esqueça a touca vermelha do saci – agora, o danado de uma perna só tem cogumelos se fundindo com a cabeça. Com As Fábulas Negras, Rodrigo Aragão (Mar Negro), José Mojica Marins – o Zé do Caixão, Joel Caetano e Peter Baiestorf apresentam suas versões assustadoras para as principais lendas do folclore brasileiro. O filme teve sua primeira exibição na madrugada do último domingo (25), pela programação da 18ª Mostra de Cinema de Tiradentes – e, se o diabo quiser, terá continuação(ões).

    “Eu tenho que tomar cuidado pra falar isso, mas a gente tem uma visão um pouco infantil do folclore brasileiro, muito pelo Monteiro Lobato, que retratou essas lendas como infantis. Mas eu já ouvi depoimentos de pessoas mais velhas de que o saci era terrível”, diz Aragão, idealizador do projeto, ao AdoroCinema.

    Trabalhando com efeitos especiais e maquiagem há mais de 20 anos, o capixaba autodidata conseguiu a proeza de realizar quatro longas em sete anos. O feito pode até não impressionar outros diretores brasileiros, como Roberto Santucci (Até que a Sorte Nos Separe), que lançou sete filmes só nos últimos cinco anos, mas é uma baita vitória considerando que estamos falando de um cinema de gênero pouco explorado na terra do saci: o terror – e ainda por cima o gore, ou seja, do tipo que jorra sangue na sua poltrona do cinema.

    Aragão cresceu em Guarapari (ES), mais especificamente em uma aldeia de pescadores chamada Perocão, local de manguezal, “com negras velhas contando histórias”, como ele gosta de contar. As lendas, portanto, povoaram as ideias do cineasta desde pequeno. As Fábulas Negras – nome também de sua produtora – é a transposição desse universo para a tela de cinema. Ao todo, Rodrigo já havia roteirizado histórias de 12 lendas do folclore nacional em versão trash.

    “O saciiiii é cooooisa nossa”

    Viajando com Mangue Negro (2008) pelo circuito de festivais, o realizador conheceu muita gente, incluindo a lenda José Mojica Marins. “O Mojica, no passado, começou a declarar que eu era o sucessor dele, isso nos trouxe uma amizade, pensei em chamá-lo apresentar meu cine trash” – a ideia inicial era que o experiente cineasta fosse responsável pela narração das passagens de um segmento para o outro do filme (são cinco histórias independentes).

    “Quando eu falei do roteiro do [episódio do] saci, que eu já tinha, ele falou [voz de Mojica]: ‘o saci é muito legaaaal, eu sempre quis fazer o saciiiii porque o saciiiii é cooooisa nossa’. Aí, eu falei: ‘Mojica, você quer dirigir?’, e ele falou [voz de Mojica de novo] eu diriiiiiijo”.

    Por ordens médicas, Mojica, 78 anos, foi o único dos quatro diretores ausente no festival mineiro. Por conta dos problemas de saúde do interprete do Zé do Caixão, que passou por uma angioplastia (cirurgia para desobstruir artéria) no ano passado, algumas alterações também precisaram ser feitas para que o cineasta assumisse a direção do episódio do saci. “Tive que adaptar pra ele, pra algumas coisas que ele queria. O primeiro roteiro era na mata profunda. Havia uma dificuldade de conseguir um bambuzal onde fosse confortável pra ele dirigir”, revela Aragão, que garante que o experiente realizador segue lúcido, que só.

    No fim, Mojica ainda fez uma participação também como ator, dando vida a um espécie de exorcista no episódio que comandou. “Fiz questão de colocar imagens dele [de bastidores] nas cenas pós-crédito para mostrar que ele participou ativamente”, apesar de estar debilitado fisicamente, Rodrigo esclareceu. E as cenas são hilárias.

    Liberdade poética movia a profundo ódio

    Os episódios são linkados a partir de um grupo de crianças vestidas como seus próprios super-heróis (nada de Batman ou Homem-Aranha), que brincam numa mata e cada uma relembra uma lenda conhecida. Bem, mais ou menos conhecida. O primeiro e o último episódio, dirigidos por Rodrigo Aragão, são definidos por ele como “autobiográficos”.

    Respectivamente, eles mostram um político corrupto derretendo pelo vaso sanitário enquanto o protagonista tem de enfrentar uma verdadeira miríade burocrática contra um vazamento de esgoto na sua porta (uma “liberdade poética movia a profundo ódio”, diz ele, que já enfrentou problemas com dejetos brotando na porta de casa); e o capítulo de encerramento, que traz uma mulher que troca o marido por um (assustador) diabo (uma das histórias que as negras velhas contavam).

    “[O filme] Ser narrado por crianças nos dá essa liberdade de extrapolar, de exagerar, de dar cor”, justifica o autor do projeto.

    A Peter Baiestorf, o vilão de A Noite do Chupacabras, coube defender (ou atacar com) o lobisomem. “A minha primeira escolha tinha sido o curupira, só que, conversando com o Rodrigo, em virtude de tudo ser filmado em seis dias, ia ficar muito complicado”, explicou o fã de Um Lobisomem Americano em Londres. “O lobisomem já é um bicho violento, já tinha toda a abertura pra botar o gore”.

    Já Joel, o “mocinho” de Chupacabras, justifica sua escolha como realizador “urbano”: “no meu caso, o Rodrigo apresentou algumas opções, mas o primeiro foi o da 'loira do banheiro', até porque é uma lenda urbana e eu tenho a característica de filmar muito em estúdio. Eu gostei do desafio, porque fazer um filme de fantasma que assusta é difícil. E fiquei feliz de ver as pessoas pulando da cadeira durante a exibição”.

    Filmado entre abril e maio 2014, com um orçamento de R$ 200 mil, os dois alegam que nunca tiveram uma condição tão “bacana” para rodar. Rodrigo interrompe: “a nossa estrutura é extremamente pequenininha. É um ovinho. Mas a gente trabalha há dez anos juntos. É tudo feito com muito carinho”, ironiza.

    “Distribuir no Brasil é mais difícil que distribuir no Japão”

    O Papai Noel da trupe atende pelo nome de Hermann Pdiner, produtor independente que financiou todos os filmes do diretor. Nenhum deles teve apoio de leis de incentivo. Com As Fábulas Negras, até o inscreveram (novamente) em um edital estadual, mas... “A gente tentou, mas não passou. Tiramos nota máxima em orçamento, nota máxima em capacidade de produção, mas... por algum motivo não passou. Existe uma mentalidade da máquina que acha que o terror é um subgênero menor”.

    Filme pronto, eles acreditam que o bicho papão será lançá-lo comercialmente. Pelo menos, aqui. “O Brasil é cheio de fãs do gênero, tanto que Annabelle teve uma ótima bilheteria”, aponta Aragão – sem ter visto o filme ainda –, que já teve sua obra distribuída no Japão, na Alemanha, México, Holanda, entre outros. “E um campo incrivelmente fértil para se produzir clássicos mundiais em matéria de lenda, de folclore, de personagens, de tempero. Eu espero que As Fábulas tenha um volume dois, três, quatro, cinco... com novos diretores, novos roteiristas”.

    Reza a lenda que o filme que estreia bem em Tiradentes é predestinado a uma boa carreira. Então, que o futuro promissor de As Fábulas Negras não seja apenas mais um conto do folclore nacional, amém. (Amém?)

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