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    Exclusivo: "Eu nunca pensei em fazer um filme para crianças", diz o diretor de O Menino e o Mundo

    O cineasta Alê Abreu fala sobre o papel da música e da política em O Menino e o Mundo, e comenta a situação atual do cinema de animação no Brasil.

    por Bruno Carmelo

    A animação O Menino e o Mundo chega aos cinemas brasileiros nesta sexta-feira, dia 17 de janeiro, trazendo a comovente história de um garoto à procura do pai, que foi procurar um emprego na cidade grande. O filme combina belas cores, música de qualidade e uma mensagem social muito madura, que conquistaram a redação do AdoroCinema (confira a nossa crítica).

    Nós aproveitamos para conversar em exclusividade com o diretor Alê Abreu, experiente animador, sobre o nascimento deste projeto, sobre o papel da música e da política no filme, e sobre a situação do cinema de animação no Brasil. Confira a seguir este bate-papo:

    O Menino e o Mundo

    Como surgiu o projeto de O Menino e o Mundo?

    O Menino e o Mundo surgiu de dentro de outro filme. Eu estava preparando um projeto chamado Canto Latino, um Animadoc, pesquisando informações sobre os países da América Latina. Eu estava viajando muito na época, e fazia muitos diários de viagem, com desenhos. Em um desses cadernos de anotação, eu encontrei um rabisco de um menino que me chamava a atenção. Era um menino muito simples, mas eu gostava do traço nervoso, tosco, que carregava algo do espírito que eu buscava. Aí, com a ideia de que o documentário tende à ficção, eu acabei me lançando em uma ficção, mas carregando o pano de fundo do Canto Latino, ou seja, a formação desses países que têm rigorosamente a mesma História, que passaram por períodos muito parecidos de tramitação de governos de cunho mais social, e depois passaram por momentos de ditadura... Até o momento atual da globalização. Então eu tinha esse mundo, e a imagem de um menino. Restava saber como os dois se encaixavam.

    O processo de criação de O Menino e o Mundo foi completamente arriscado. A gente começou a fazer o filme na ilha de edição, sem saber onde ia chegar. Poderia não ter dado certo, mas o processo era apaixonante, porque a gente podia fazer de tudo. A gente criava situações simplesmente pelo desejo de fazer: “E se o menino voasse no vento?” “E se ele encontrasse um jovem e um velho?”, mas eu não sabia quem era o jovem, o velho, o cachorro... Tudo foi se formando aos poucos, com surpresas. As descobertas dos espectadores também foram vivenciadas por mim e por toda a equipe.

    Este é o seu segundo longa-metragem, depois de Garoto Cósmico, mas você tem experiência em publicidade, pintura, literatura, animação... Como essa trajetória influenciou o filme?

    Há um tempo, uma das coisas que mais me angustiavam era o fato de eu fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e cada uma dessas coisas, a pintura, as ilustrações, os filmes, cada um apontava para um caminho de linguagem diferente. Era muito difícil para mim. Eu tinha um tipo de pintura, que ia por um caminho formal, eu tinha um tipo de filme, com outros gráficos... À medida que eu fui me aprofundando em cada um deles, eles foram se encontrando de alguma forma. Hoje, eu quase não consigo diferenciar o meu trabalho de pintura, ilustração e cinema. Eles estão no mesmo universo, e um influencia a linguagem do outro. O Menino e o Mundo nasce de um intermédio mais pictórico do que literário, ou teatral. Ele não tem muito intermédio da palavra, mas tem o raciocínio da pintura, com a aventura na tela branca. O próprio enquadramento de cada cena foi muito delineado por um pensamento de pintura, mais do que pelo enquadramento tradicional cinematográfico.

    Algo que me surpreendeu no filme é a representação triste e melancólica e da cidade e da vida adulta em O Menino e o Mundo.

    Eu não sei como a gente chegou nisso... O que eu posso dizer é que a relação entre o menino e o mundo é mais do que um lugar geográfico, é uma jornada de crescimento. É uma criança que sai de um lugar abstrato, que é o lugar da infância, quando você acredita que tudo é possível. Isso forma um espaço colorido, onde tudo pode acontecer. À medida que a gente caminha, viaja para uma esfera adulta, a gente deixa para trás algumas coisas, e dentre essas coisas está essa joia importantíssima da infância, que é a crença que outras coisas são possíveis. Essa representação triste do mundo tem a ver com essa perda de esperança. O adulto só enxerga o mundo que a gente tem, por ter perdido a visão da infância.

    A questão universal do amadurecimento é combinada com um teor social muito forte, específico da realidade brasileira. É raro ver esse tema em uma animação que também é destinada ao público infantil.

    Primeiro, eu acho importante dizer que O Menino e o Mundo não é um filme necessariamente infantil. Eu nunca pensei em fazer um filme para crianças, eu simplesmente faço os filmes, e no final a gente pensa para quem é esse filme. Definir o público é uma exigência do mercado. Mas é algo feito com muita verdade, sem muito pensamento de marketing.

    A relação com questões políticas, sociais e até as manifestações recentes, que devem voltar a acontecer muito em breve, foi muito surpreendente. As manifestações aconteceram quando a gente estava na finalização do filme. A vontade era lançar o filme naquele momento. Cinco anos atrás, quando começamos o projeto, ninguém pensava que as coisas aconteceriam com essa intensidade. A conotação política também veio da pesquisa do Canto Latino, que atravessava diversas questões ideológicas, com esse pano de fundo apaixonante que é a nossa História, e como ela chega ao mundo de hoje.

    Como você pensou em trazer o rapper Emicida e os Barbatuques para a trilha sonora?

    O Menino e o Mundo nasceu com vontade de ser música. Ele não tinha diálogos desde o começo, e tinha uma experimentação sonora, porque a gente já colocava músicas de referência. Algumas passagens foram cantadas, sugeridas para a gente pelo canto latino de Violeta Parra, pelas músicas de protesto dos anos 1960, pela nova trova cubana. O filme queria ser muito musical. As referências que a gente usou eram Naná Vasconcelos, os Barbatuques, que serviram como referência desde o início. Aí a gente pensou: Por que não chamar o próprio Naná Vasconcelos e os Barbatuques para a trilha? Um dos fundadores dos Barbatuques é meu amigo de infância...

    O Emicida chegou quando o projeto estava quase pronto. A gente imaginava os créditos em silêncio, mas a Priscila Keller, que é a nossa coordenadora de arte, sugeriu que a gente colocasse uma letra em português no final da história, para contextualizar, pôr o pé no chão no final dos créditos. A gente pensou em colocar uma música de protesto, e depois pensamos em escolher algo mais atual. Não tem nada mais atual como forma de protesto do que o rap. E chegamos ao Emicida naturalmente, porque é um cara de São Paulo muito ouvido pelos jovens, e também simbolicamente ele é um menino como esse do filme, que tem voz. É uma maneira muito bonita de fechar o filme. Aí ele fez esse rap, e não tivemos que ajustar nada, a música caía como uma luva no final da história.

    Gostaria que você comentasse a situação do cinema de animação no Brasil. Uma História de Amor e Fúria acaba de vencer o importante festival de Annecy, e O Menino e o Mundo também parece representar um passo na evolução da produção nacional do gênero.

    Desde que eu comecei a fazer animação, há 25 anos, eu sempre vi o cinema de animação brasileiro crescer. Claro, tiveram altos e baixos, mas em geral, foi melhorando. Eu acompanhei o surgimento do Anima Mundi, acompanhei as mudanças de tecnologia que favoreceram não só o Brasil, mas o mundo inteiro, porque tornaram a animação mais acessível a todos.

    Agora, qualquer um pode produzir um curta-metragem dentro do seu quarto. O Anima Mundi estimula os jovens a entrar no ambiente da animação, com a facilidade do computador que ampliou o número de pessoas com acesso à tecnologia dos filmes. Também tem as leis de incentivo ao cinema que serviram à animação, e hoje tem leis específicas para a animação. Os animadores que faziam curtas nos seus quartos nos anos 1990, hoje estão fazendo coproduções internacionais, seriados de TV, longas-metragens. Felizmente, eu pude acompanhar de camarote esta evolução no Brasil. Uma História de Amor e Fúria deu um passo importante quando levou a animação brasileira a Annecy. Isso vai jogando uma luz para a animação brasileira. Talvez esse seja o momento de a animação brasileira ser reconhecida no exterior.

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