Valor Sentimental
Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Valor Sentimental

Valor Sentimental transforma conflitos familiares em cinema íntimo

por Nathalia Jesus

Valor Sentimental marca o retorno de Joachim Trier a um território que ele conhece bem: o das relações familiares atravessadas por silêncios, ressentimentos antigos e tentativas mal resolvidas de afeto. O filme acompanha duas irmãs, Nora (Renate Reinsve) e Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas), que, após a morte da mãe, precisam lidar com o reaparecimento do pai, Gustav (vivido por Stellan Skarsgård), um diretor de cinema veterano que esteve emocionalmente ausente durante boa parte da vida delas. Esse reencontro, longe de qualquer catarse imediata, serve como ponto de partida para uma narrativa não tão interessada em reconciliações, mas nos pequenos atritos que definem os vínculos duradouros.

Desde os primeiros minutos, Joachim Trier, que dirige e co-escreve o roteiro ao lado de Eskil Vogt, deixa claro que não quer retratar um melodrama fácil. A morte que abre o filme não funciona como choque, mas como um estado permanente, algo que já vinha se instalando havia muito tempo naquela família.

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O luto, aqui, não é um evento isolado, mas um pano de fundo que molda comportamentos, decisões e até as escolhas profissionais dos personagens. Ao optar por esse registro contido, o diretor constrói um filme que se desenvolve em camadas, exigindo atenção aos detalhes mais do que às viradas narrativas.

Um pai ausente que não entende a dor das filhas

O título Valor Sentimental não é irônico, mas tampouco literal. No filme, Joachim Trier investiga o que realmente carrega valor emocional quando o tempo passa e as relações se desgastam. Gustav é um cineasta respeitado, mas também um homem que sempre colocou a criação artística acima da vida familiar. Seu desejo de se reconectar com as filhas surge misturado a um projeto de filme que ele quer realizar, borrando as fronteiras entre afeto genuíno e interesse criativo.

Essa ambiguidade é central para o filme. Gustav não é retratado como vilão, mas como alguém incapaz de separar vida e obra, sentimento e método. Trier observa esse comportamento com distância crítica, sem absolver nem condenar. O desconforto surge justamente dessa indefinição: o pai quer se aproximar, mas faz isso através da linguagem que domina — o cinema —, transformando experiências pessoais em material artístico.

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Renate Reinsve, como Nora, oferece um contraponto preciso a essa postura. Sua personagem carrega uma resistência constante, um misto de lucidez e exaustão diante das tentativas tardias do pai. Nora entende o jogo que está sendo proposto e se recusa a participar dele nos termos de Gustav. Já Agnes, vivida por Inga Ibsdotter Lilleaas, ocupa um espaço diferente, mais conciliador, embora igualmente marcado por frustrações. A dinâmica entre as irmãs é construída com cuidado, revelando diferenças de temperamento sem recorrer a conflitos explícitos.

Cinema dentro do cinema

Ao inserir um filme em processo dentro da própria narrativa, Joachim Trier retoma um recurso que poderia soar autoconsciente demais, mas que aqui funciona como ferramenta dramática. O cinema aparece como meio de aproximação e, ao mesmo tempo, como obstáculo. Para Gustav, filmar é uma forma de organizar emoções; para as filhas, é justamente esse impulso de organizar, enquadrar e transformar em obra que sempre dificultou a relação com ele.

O roteiro explora essa tensão sem transformar o debate em manifesto. As discussões sobre arte, memória e responsabilidade surgem de maneira orgânica, em diálogos que evitam grandes discursos. Trier confia na inteligência do espectador e permite que as contradições permaneçam abertas. Não há uma resposta clara sobre até que ponto a arte justifica ausências ou se o gesto criativo pode reparar danos antigos.

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Visualmente, o filme mantém a sobriedade característica do diretor. A câmera observa mais do que enfatiza, privilegiando espaços domésticos, corredores, salas e cozinhas como lugares de confronto silencioso. A montagem respeita o tempo dos personagens, criando pausas que dizem tanto quanto os diálogos. A trilha sonora é discreta, usada com parcimônia, reforçando a sensação de intimidade sem manipular emoções.

Valor Sentimental passeia entre a memória e o presente

O que diferencia Valor Sentimental de outros dramas familiares é sua recusa em oferecer resolução clara. Joachim Trier não constrói uma jornada de superação nem propõe reconciliações definitivas. O filme se interessa mais pelo processo do que pelo resultado, pela tentativa de aproximação mais do que por seu sucesso ou fracasso. Essa escolha pode frustrar quem espera uma narrativa mais conclusiva, mas está alinhada com a proposta do diretor.

Há também uma reflexão sutil sobre legado. Não apenas o legado artístico de Gustav, mas o emocional, aquilo que pais deixam para os filhos sem perceber. O filme sugere que esse tipo de herança é feita tanto de gestos quanto de ausências, de palavras ditas e, principalmente, das que nunca foram. O “valor sentimental” do título, portanto, não está nos objetos, nas obras ou nas memórias idealizadas, mas nas marcas invisíveis que moldam relações ao longo do tempo.

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Ao final, Valor Sentimental se afirma como um filme maduro, interessado em zonas cinzentas e desconfortos persistentes. Joachim Trier reafirma sua habilidade em retratar personagens complexos sem recorrer a exageros emocionais. É um cinema atento às nuances, que prefere perguntas a respostas e entende que algumas distâncias nunca são totalmente superadas — apenas aprendidas a conviver.

Sem buscar impacto imediato, o filme permanece justamente por aquilo que não resolve. E talvez seja aí que resida seu maior acerto: reconhecer que nem todo afeto se transforma, mas todo afeto deixa marcas.

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