O pianista e sua intertextualidade com Shakespeare e Dostoiesvisk
Alguns poucos segundos de cenário preto e branco. Ano de 1939. Cidade de Varsóvia, capital da Polônia, e um par de mãos masculinas faz bailarinar seus dedos cumpridos em teclas de piano, até melodia de Frédéric Chopin dar boas vindas aos telespectadores do filme O pianista (2002) dirigido pelo francês Roman Polanski.
Vivido na pele do ator norte-americano Adrien Brody, Władysław Szpilman é o pianista judeu-polonês neste inquietante filme que recebe pitadas de intertextualidade com trechos de obras do inglês William Shakespeare e do russo Fiódor Dostoiesvisk. Início da Segunda Guerra Mundial, e os judeus são impiedosamente perseguidos pelos alemães, sendo até proibidos, por decreto oficial, de frequentarem parques e alguns restaurantes de Varsóvia.
Szpilman resolve vender livros com seu amigo judeu, em praça pública, para receber alguns zlotys (a unidade da moeda polaca) para que possam comprar comida.
- Vendeu algum? – questiona o pianista ao seu companheiro de venda.
- Só O idiota de Dostoievski. Três miseráveis zlotys.
O Idiota, romance publicado em 1869, traz um dos personagens mais cativantes da literatura mundial: o príncipe Míchkin, homem bondoso, íntegro, ingênuo, que padece de epilepsia. Os seres humanos o julgam incapaz, bobo, mas desconhecem sua inteligência aguda, subestimando-a com chacotas. Aqui, percebemos a semelhança entre o judeu de Polanski e o Míchkin de Dostoievski.
A partir deste diálogo em que emerge a primeira intertextualidade no filme, o telespectador verá cenas nas quais personagens utilizam a expressão “idiota” em suas falas, como num episódio em que um menino vende caramelos para judeus famintos e um dos judeus, ao avistar o garoto, lança a pergunta-reflexiva:
- Idiota! O que ele pensa que fará com o dinheiro?
Em seguida, o pai de Szpilman, senhor de cabelos embranquecidos e voz debilitada, pergunta ao pequeno vendedor:
- Quanto é o caramelo?
- Vinte zlotys.
O preço superfaturado do caramelo contrasta abruptamente com o mísero preço do livro O idiota vendido por três zlotys.
Mais adiante, o pianista Szpilman pergunta ao amigo:
- O que está lendo?
Sentado no meio fio, responde lendo alguns trechos do livro:
- “Se nos picarem, não sangramos? Se nos fizerem cócegas, não rimos? Se nos envenenarem, não morremos? E, se nos ultrajarem, não nos vingaremos?.
- Bem a calhar.
- Por isso eu trouxe. - Fecha o livro, que mostra em sua capa o retrato do poeta William Shakespeare, e o entrega ao pianista.
Estas são citações desafiadoras da fala do personagem judeu Shylock da obra shakespeariana O mercador de Veneza. Nesta sua narrativa, o dramaturgo inglês faz malabarismo com a ironia e a comédia. Eis a segunda intertextualidade bem estruturada por Polanski ao longo do drama O pianista.
Que intenção ou quais intenções teve o diretor ao intertextualizar fragmentos de O idiota e O mercador de Veneza neste longa-metragem que traz como temáticas perturbadoras a Segunda Guerra Mundial, a perseguição aos judeus e um certo pianista judeu-polonês? Ao leitor-telespectador caberá ler O idiota, O mercador de Veneza, assistir O pianista e, então, refletir o propósito da intertextualidade de Roman Polanski.
No ano de 1945, Szpilman escreveu um relato da sua sobrevivência em Varsóvia. Sua história transformou-se em livro de título Morte de uma cidade. Décadas depois, o cineasta Roman Polanski, que também dirigiu a comédia-terror A dança dos vampiros (1967) e o suspense-psicológico O bebê de Rosemary (1968), construiu versão de toda essa história dramática vivida pelo músico Władysław Szpilman. O pianista ganhou três orcars, o de melhor diretor, melhor ator e melhor roteiro adaptado, sendo indicado ainda para melhor filme, melhor fotografia, melhor figurino e melhor edição.
Polanski, Shakespeare, Dostoiesvisk. Um diretor francês, um dramaturgo inglês, um escritor russo. França, Inglaterra e Rússia, países aliados naquela guerra em combate aos alemães. Coincidências?
Tenham os leitores ideia da dimensão da genialidade de Polanski. Fizera ele teste com mais de 1.400 atores para encarnar o papel do pianista Szpilman. Outro fato curioso é que sua mãe morrera em um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e, quando ainda criança na Polônia, para se escapar dos nazistas, escondia-se nos cinemas.
Reverencio O pianista, sua intertextualidade presente em cenas e diálogos chocantes, seu começo estimulante, seu desenrolar aterrador e o seu desfecho extraordinariamente carregado de suspense, compaixão e poesia. Tudo isso encarnado por um elenco de primeiríssima linha.