GREEN BOOK - O GUIA
O longa é dirigido por Peter Farrelly (primeiro trabalho que Farrelly dirige sem seu irmão). O roteiro foi escrito por Farrelly, Brian Hayes Currie e Nick Vallelonga (filho de Tony), se baseando em uma história real sobre as entrevistas de Tony e de Shirley, além das cartas que foram enviadas à sua mãe. O título "Green Book" é uma influência do livro "The Negro Motorist Green Book", que se trata de um guia turístico para afro-americanos, para ajudá-los a encontrar locais que possam ser habitado por negros em suas viagens, como dormitórios, restaurantes e bares.
O longa se passa no começo dos anos 60, quando Frank "Tony Lip" Vallelonga (Viggo Mortensen) se encontra desempregado, logo após o fechamento da discoteca em que trabalhava de segurança (o Copacabana). Dada as circunstâncias atuais, Tony começa a viver de pequenas fraudes e bicos, enquanto precisa manter sua mulher e seus dois filhos. É nessa ocasião que aparece Don Shirley (Mahershala Ali), um renomado pianista negro que acaba contratando Tony como seu motorista, para acompanhá-lo em sua turnê pelas cidades do interior dos EUA.
O trabalho de direção de Peter Farrelly é completamente fantástico, o roteiro é escrito com uma perfeição incrível (eu daria um Oscar para o roteiro de Green Book). O longa se passa no EUA na época da segregação, um período em que os negros jamais poderiam frequentar os locais que os brancos habitavam, como bares, restaurantes, hospedagem e até banheiros. É exatamente nesse ponto que o roteiro nos ganha, em nos apresentar uma história sobre um tema delicado e pesado, mas de uma forma cômica, com uma sátira e um discurso ácido. Naquela época era um verdadeiro tapa na cara da sociedade, em mostrar um homem branco recebendo ordens e sendo empregado de um homem negro (como as inúmeras cenas que acompanhamos ao decorrer do filme). O longa de Farrelly funciona como uma mistura de "Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississipi" e o indicado ao Oscar "Infiltrado na Klan", ambos navegam com muita propriedade no tema em questão. Mudbound é totalmente focado na segregação, mas de uma forma bem mais séria, Infiltrado na Klan aborda os eventos racista de uma forma muito forte e pesada, já Green Book utiliza o racismo e a segregação de uma forma bem sátira, bem cômica, bem ácida e não menos importante que os dois filmes destacados.
O ponto alto do filme é sem dúvidas Tony Lip e Don Shirley, a forma como eles são apresentados é muito boa e muito convincente. Tony como aquele brucutu ítalo-americano, um fanfarrão arrogante, com aquela pinta de macho soberano que possui o racismo entranhado em seu interior. Já Don Shirley é traçado de uma personalidade requintada, fina, elegante, de classe alta, todo pomposo, que jamais sai da sua postura de "gentleman". Começamos a acompanhar as duas personalidades exatamente na forma destacada, porém a cereja do bolo vem quando o roteiro nos mostra a convivência de ambos durante a turnê, a descaracterização dos personagens, a desconstrução dos seus ideais e dos seus costumes. É muito bom, o filme ganha forças expressivas a partir desse ponto, quando ambos são confrontados com várias adversidades ao longo da jornada, sendo obrigados a deixar de lado as suas diferenças e encarar o racismo, o perigo e a intolerância impostas pelos seres humanos em seus caminhos.
Um filme pra se tornar uma obra-prima tem que apresentar cenas memoráveis, daquelas que jamais sairão das nossas cabeças, e Green Book possui várias. A forma como os dois personagens confrontam as suas ideias é incrível e muito bem elaborada, como na cena que Tony se acha mais negro que Don Shirley pelas suas dificuldades enfrentadas na vida. Já Don Shirley apresenta o seu ponto de vista perante ser um pianista que toca unicamente para as distrações dos brancos, quando isso jamais terá alguma importância relevante para os brancos - sensacional! O longa de Farrelly é rico em abordar esses discursos intolerantes e racistas de uma forma leve, mas com uma objetividade muito direta, como um verdadeiro soco no estômago. É exatamente nesse ponto que está a magia e a magnitude do longa de Peter Farrelly. É muito notável o desconforto de Tony entre as situações que ele não estar acostumado a passar, de certa forma suavizando o caráter de seu personagem, por outro lado é mais grandioso ainda observar o rumo e a desconstrução de Don Shirley, saindo totalmente daquela figura inabalada e prepotente, para uma forma mais humana, sendo obrigado a entender o que realmente acontece com os negros no período da segregação - nota 10 para o roteiro de Green Book!
Há muito tempo que eu não me divertia tanto assistindo a um filme. Green Book toca em um tema muito pesado e incômodo, mas não deixa de ser um filme leve, com uma história gostosa de se acompanhar. Aquele típico filme que você não vê o tempo passar e ao final das suas 2h10m você quer mais, não quer que o filme acabe e já quer começar a assisti-lo novamente. O longa de Farrelly possui qualidades que engrandecem a obra de uma foma muito notória e objetiva: como a fotografia, que está totalmente graciosa acompanhando os passos desse "Road Movie". A trilha sonora do compositor Kristopher Bowers (não o conhecia) é bem autêntica, acompanha e dar ritmo ao filme, deixando a história mais leve e suavizando o tema abordado - trilha sonora muito boa! A direção de arte também merece destaques, está muito bem ajustada dentro dos padrões da época, tanto nos figurinos como nos cenários, tudo muito bem caprichado.
Viggo Mortensen está soberano em seu papel, como uma atuação a nível de Oscar (sem nenhum exagero). Mortensen interpreta muito bem o seu personagem, dar ritmo, química, consegue nos incomodar com aquele seu jeito machão e nos fazer simpatizar pela sua postura ao final do filme. Assim como Mahershala Ali que também atua no mesmo nível de Viggo Mortensen, expondo o seu personagem com seus trejeitos e suas facetas, principalmente em sua desconstrução. Mahershala Ali e Viggo Mortensen são atores requintados, versáteis e incríveis e em Green Book atuam em altíssimo nível, com uma química invejável que nos faz simpatizar, se importar e torcer por ambos os personagens. Pra mim não existe melhor e nem atuação superior, ambos estão no ápice, entregam o que tem de melhor e estão na mesma sintonia. Assim como não vejo um protagonista e um coadjuvante, ambos funcionam como protagonistas de suas respectivas histórias. Viggo Mortensen já concorreu ao Oscar em algumas ocasiões, porém nunca levou a tão cobiçada estatueta. Nesse ano ele terá mais uma chance ao concorrer na categoria de Melhor Ator (muito justa por sinal). Mahershala Ali fez vários papeis ao longo de sua carreira, mas ganhou a grande notoriedade ao levar a estatueta em "Moonlight", se tornando o primeiro ator muçulmano a ganhar um Oscar. Esse ano ele ganhará sua segunda estatueta por Green Book, isso é inquestionável (visto que ele vem ganhando tudo que esteve indicado, só falta o Oscar).
Não posso esquecer de mencionar a bela Linda Cardellini, que fez Dolores, a esposa de Tony. Uma atuação muito segura, bem ajustada, verdadeira e comovente, que esteve lado a lado com Tony mesmo com toda distância. A esposa amável e companheira, aquela amiga e braço direito do marido - sensacional!
Green Book levou o Globo de Ouro este ano por Melhor Filme - Musical ou Comédia (e na minha opinião foi um prêmio muito justo, apesar de eu não ter assistido a todos os concorrentes). Também concorreu no Screen Actors Guild Awards, no Critics' Choice Awards e BAFTA. No Oscar 2019, Green Book aparece em 5 categorias, incluindo a principal da noite. E eu vou ser bem sincero: o meu favorito ao Oscar de melhor filme é Roma, por todo amor e carinho que eu tenho por ele, mas tirando a obra-prima de Cuarón, eu daria a estatueta de Melhor Filme para Green Book, por ser um filme autêntico, verdadeiro, real e muito importante com seu discurso satírico e ácido. Uma verdadeira obra-prima de Peter Farrelly, daqueles filmes pra ter uma cópia guardada de cabeceira - com total certeza![22/02/2019]