Etiópia, terra de ninguém
por Bruno CarmeloQuantos filmes você já viu passados na Etiópia? Quantos deles eram ficções científicas, sobre um futuro pós-apocalíptico, estrelados por um personagem com deficiência física que tenta combater naves espaciais e nazistas com a ajuda de Papai Noel? Para o longa-metragem Crumbs, o diretor estreante Miguel Llansó ousou a mistura de gêneros, cenários e ideias.
Ao contrário do que a premissa pode sugerir, este não é um filme tosco, muito pelo contrário. As imagens são belíssimas, com fotografia muito bem cuidada, uso excepcional dos espaços e atuações seguras dos protagonistas Daniel Tadesse e Selam Tesfayie. A ambientação – elemento essencial para um filme futurista – é tratada com elegância por Llansó. O interesse de Crumbs tampouco se limita ao olhar indulgente à produção rodada em um país pobre: a estética subversiva e o conteúdo crítico do filme colocam-no em pé de igualdade com outros títulos que circulam pelos grandes festivais.
As piadas sobre Michael Jackson, Justin Bieber, Michael Jordan, Papai Noel, Tartarugas Ninja, Coca-Cola e tantos outros ícones norte-americanos levou o público às gargalhadas. Mas estes símbolos carregam significados interessantes quando deslocados para o cenário paupérrimo da Etiópia: tornam-se metáforas de uma colonização cultural e política catastrófica do eixo Estados Unidos-Europa, da perda de valores e de instituições e do culto contemporâneo aos produtos de consumo. Não é à toa que os vilões são nazistas e comerciantes em busca do lucro; não é à toa que a guerra civil na Etiópia é mantida pateticamente por espadas de plástico compradas no Carrefour.
Por trás desta aparência pop e jovial, esconde-se um olhar ácido ao descaso das grandes potências com o continente africano. O fato de o diretor usar paisagens etíopes comuns como cenário verossímil de um mundo pós-apocalíptico já diz muito sobre a condição desfavorecida do país. Além disso, o discurso crítico foge à costumeira acusação direta, acreditando no potencial catártico e de estranhamento oferecido pelo humor.
Talvez nem todos os elementos funcionem à perfeição em Crumbs. Algumas cenas terminam com um fade abrupto, indicando possíveis problemas de montagem, enquanto o final pode frustrar os fãs da ficção científica, por se recusar a oferecer a recompensa esperada do gênero. Mesmo assim, não é todos os dias que se vê uma nave espacial em forma de mão estendida, em sinal de ajuda, afastando-se da África. Crumbs é uma experiência única, criativa e profundamente interessante.
Filme visto no 25º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, em junho de 2015.