Baseado em livro de mesmo nome, lançado em 1993, a adaptação para as telas foi um sonho acalentado pelo ator Jeff Bridges durante 20 anos. Na sua concepção original, Bridges desejava reservar a seu pai, Beau Bridges, o papel que acabou lhe cabendo nesta adaptação, como o “Doador” do título. Confesso que as críticas que havia lido a respeito do filme (já chamando a atenção que não li o livro que deu origem ao filme) e até mesmo o seu cartaz de divulgação me deixaram com um pé atrás, mesmo sabendo que no elenco – embora secundários – estavam, além de Jeff Bridges, Meryl Streep, o que garantia, ao menos, um bom elenco de apoio; e na direção, o experiente Phillip Noyce. O cartaz deste O Doador de Memórias dá especial destaque ao casal de protagonistas juvenis – Meryl e Jeff estão por assim dizer como “paisagem” do filme. Este detalhe me deixou a impressão que o filme era mais uma tentativa de lucrar na esteira deixada pelo sucesso de Jogos Vorazes, que tem rendido filmes e franquias como Cidade dos Ossos – Os Instrumentos Mortais, Divergente e afins, filmes tipicamente voltados para plateias adolescentes e que não se preocupam nem um pouco com a qualidade da produção, roteiro e elenco, focando unicamente nos efeitos visuais. No entanto, Jeff Bridges tem mais destaque no filme do que se poderia supor, e mesmo o casal do cartaz (Brenton Thwaites/Jonas e Odeya Rush/Fiona) estão muito bem, com interpretações convincentes e sinceras, não sendo apenas “rostinhos bonitos”, como muitas vezes acontece. Restava saber se as críticas, majoritariamente negativas, tinham razão.
Lendo alguns comentários e resenhas sobre o filme você acaba se preparando para “descascar” um verdadeiro abacaxi em forma de filme. O Doador de Memórias tem seus problemas, mas nada que justifique essa recepção tão negativa – por parte da crítica, fique bem claro, já que o filme, embora não tenha sido um estouro de bilheteria, tem se saído bem junto ao público. O filme começa e já tive uma surpresa (pois não havia assistido ao trailer) que, embora possa até parecer uma escolha óbvia dentro do contexto da história, funciona muito bem: o uso do preto & branco. A sua passagem para o uso das cores, no início apenas alguns detalhes e objetos (como foi feito em A Vida em Preto e Branco) é bem gradual, criando uma belíssima fotografia quando a cor ainda apenas se insinua nas cenas, em tons pasteis. Aliada a uma caprichada produção cenográfica, este é sem dúvidas o maior acerto do filme: ele é de extremo bom gosto, com sequências e enquadramentos que tornam seu visual um deleite para os olhos (os fãs que me perdoem, mas o maior problema de Jogos Vorazes é aquele visual brega nos cenários e roupas). Outro ponto positivo é que o filme não tem pressa, sendo que a ação propriamente dita ocorre no momento certo, sem atropelos e bem justificada. Seu maior defeito, para mim – não posso opinar quanto à questão de adaptação do livro – é que o filme não apresenta em sua história nada de efetivamente original. Embora ele não siga uma linha que lembre Jogos Vorazes – alguns teimaram em lhe cobrar esta característica, numa comparação extremamente equivocada – você irá reconhecer aqui e ali situações, elementos, abordagens e “mensagens” já presentes em outras histórias situadas em universos utópicos ou distópicos, como 1984, Admirável Mundo Novo, A Vila, A Vida em Preto e Branco , até mesmo O Show de Truman, e outros mais.
Num certo aspecto minha percepção do filme talvez coincida com aqueles que o criticaram: O Doador de Memórias ganharia muito mais em qualidade como filme (não sei se isso foi deixado propositalmente de fora, mas talvez presente no livro, para “vender” o filme ao público adolescente) se fizesse uma leitura mais política da comunidade retratada, e um pouco (ou muito) menos mística. Afinal, esta comunidade “perfeita” que quer a todo custo esquecer o passado não é algo assim tão fora da realidade – indico que vejam o excelente filme Uma Cidade Sem Passado (The Nasty Girl / Das Schreckliche Mädchen) para entenderem do que estou falando. Para nós, brasileiros e terceiro-mundistas em geral, esta comunidade lembra muito a situação atual de alguns países europeus: prósperos, organizados, verdadeiros paraísos do bem-estar social para suas populações locais, mas se formos remexer seu passado histórico (em especial suas ações colonialistas na África, Ásia e América Latina nos séculos XIX e XX) encontraremos detalhes sobre os meios utilizados para chegar a este estágio avançado de civilização que fariam o Jonas do filme ficar de cabelo em pé. Mesmo assim, O Doador de Memórias tem um diferencial em relação às recentes franquias, no estilo de Divergente: quando Jonas acessa as memórias do Doador, o mundo desconhecido que se descortina para ele é a nossa realidade atual, suas guerras, a dor e a crueldade do ser humano, mas também alegrias e belezas que experimentamos, o que permite à história, embora se passando em um futuro não definido, fazer uma conexão imediata com qualquer espectador.