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    As Quatro Voltas
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    As Quatro Voltas

    A natureza reinventada

    por Bruno Carmelo

    Neste final de 2012, chega aos cinemas, em toda discrição, um grande filme: As Quatro Voltas, coprodução italiana-suíça-alemã de 2010. Se Holy Motors chocou por sua ousadia, o filme de Michelangelo Frammartino pode parecer ainda mais hermético, ainda mais difícil à primeira vista. O trailer internacional, inclusive, adiciona uma narração explicativa (algo completamente ausente deste filme mudo), como se o espectador precisasse de uma mão o guiando pelas imagens.

    Mas vale a pena se entregar à curiosa proposta do diretor. Durante os quinze primeiros minutos, vemos um camponês conduzindo suas ovelhas, trabalhando, descansando. Diante dos olhos do espectador, ele morre em sua casa. Somos imediatamente transformados em testemunhas de algo grande, importante, sem sabermos quem é este homem, ou em que contexto esta cena se insere. De certo modo, esta é a metáfora de todo o filme, que nos conduz por uma série de maravilhas banais, propondo ao espectador olhar a natureza por outros olhos.

    As Quatro Voltas subverte as expectativas do público, forçando-o a se concentrar, a prestar atenção em cada encadeamento de imagens. A primeira baliza destruída é a frágil distinção entre ficção e documentário. Temos atores, um roteiro e uma separação precisa de planos, com o diretor filmando várias partes de um mesmo objeto e compondo a cena na filmagem. Sendo assim, estaríamos diante de uma ficção, mas a natureza parece se mexer livremente, não ter sido controlada pelo diretor - algo típico do documentário. O olhar do cineasta seleciona o que quer, mas não existe mise en scène propriamente dita, com a disposição de atores e objetos no espaço para a criação de uma imagem previamente concebida.

    Além de estamos diante de algo que extrapola a separação entre ficção e documentário, outro ponto de conforto retirado do espectador é a noção de um protagonista único. Quando o camponês morre, passamos a seguir as cabras, depois a trajetória de uma árvore, ou do carvão. Tudo é associado de maneira orgânica, como se uma coisa levasse à outra. Ao mesmo tempo, existe uma noção de aleatoriedade que questiona o eventual conceito de destino. Não existe uma narrativa propriamente dita, mas os elementos nunca estão dispersos a ponto de parecerem dispensáveis. Ao contrário de muitos filmes sem grande significado, este aqui tem significados até demais.

    A natureza, em As Quatro Voltas, não é um mero cenário (ela nunca é bela como nos cartões postais), e sim o verdadeiro personagem. O pinheiro, o cabrito perdido são elementos ativos, que ditam a duração dos planos e a apreensão do espaço. Esta diferença entre as proporções gera o grande interesse da proposta: o banal é filmado como grandioso, a espontaneidade é filmada como artifício, o aleatório é filmado e montado como uma linha sucessiva, com relação de causa e consequência.

    Com sua pequena experiência, transitando entre seres e imagens, Frammartino força o espectador a enxergar na natureza ao redor elementos completamente novos, propostos por uma montagem calma, silenciosa e atenta. No final das contas, esta é uma das experiências mais instigantes e prazerosas que o cinema pode proporcionar: a transformação da visão cotidiana do mundo em algo especial, diferente, único.

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