Os Mistérios da Alma Acerca de uma Narrativa Fascinante.
Quando Paul Thomas Anderson anunciou que estava desenvolvendo um projeto que, em partes, abordaria a tão polêmica Cientologia (que se expande a cada dia), todos esperavam um filme que enfim traria às telonas tal tema que muitos veem como absurdo e outros, porém, ficam intrigados (eu, particularmente, não me interesso, mas respeito quem a admira). O cineasta – que já provou inúmeras vezes ser um dos melhores da atualidade –, no entanto, resolveu nos contar uma história muita mais ampla e instigante, não se limitando a um só pano de fundo. Com isso, “O Mestre” se torna, sem dúvidas, um dos filmes com os objetivos mais complexos do ano, explorando conceitos filosóficos e religiosos para aprofundar a fascinante natureza humana.
O filme trata da fundação da Causa, uma organização religiosa criada por Lancaster Dodd (Hoffman), conhecido como O Mestre, nos anos 50, depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Freddie Sutton (Joaquin Phoenix) é um alcoólatra, veterano da Marinha, que volta da guerra e regressa ao lar, aflito e inquieto quanto ao seu futuro. Ele se torna aprendiz de Lancaster Dodd, mas começa a questioná-lo quando o culto ganha proporções de fervor cego e sua relação com O Mestre começa a se tornar mais ampla e enigmática do que ele poderia imaginar.
O filme não teve uma boa recepção no geral. Muitos críticos da imprensa especializada o classificaram como “vazio e sem sentido” – o que me parece um grande equívoco. “O Mestre” é deveras um dos filmes mais ambiciosos da filmografia de Thomas Anderson, desta forma, a obra só se completa com a aguçada percepção de quem a assiste. Claro que em muitos momentos não fica claro o que, realmente, o cineasta deseja nos comunicar; porém isto seria, de fato, um grande problema caso o filme tivesse sua premissa mal desenvolvida acerca de tamanha profundidade pretendida – o que, nem de longe, é o caso. No longa, o cineasta aborda sua trama de modo tão intrigante e interessante que a relação entre Lancaster Dodd e Freddie Quell se torna um prazeroso enigma a ser decifrado em meio a poderosos momentos com marcantes diálogos que, certamente, despertam reflexão.
Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, o filme de cara nos apresenta seu protagonista, Freddie Quell, e não demora nada para percebermos que se trata da melhor atuação da carreira do ótimo ator Joaquim Phoenix, que faz um papel tão difícil e estilizado de modo tão brilhante que chega a impressionar – com direito, inclusive, a precisas nuances corporais que tornam o personagem ainda mais fascinante. Assim, acompanhamos Freddie, que se encontra em um perturbado estado de sua vida nostálgica e vazia, mergulhando de vez no alcoolismo e se tornando um individuo obscuramente compulsivo e problemático. Então, acidentalmente ou não, Freddie tem seu caminho cruzado com o de Lancaster Dodd (interpretado muito bem pelo sempre espetacular Philip Seymour Hoffman), um sábio homem (com inúmeras vocações) que, mesmo possuindo muitos inimigos, tem um “dom” genial para lidar com as pessoas que o seguem. Desta forma, Dodd, lutando contra seus problemas, se transforma no mais fiel aprendiz de Lancaster, que, aos poucos, vai adquirindo domínio sobre o sujeito.
Como é de costume em seus filmes, Paul Thomas Anderson possui um cuidado notável na direção, o que, aliado a sua diferenciada percepção artística e a belíssima fotografia de Mihai Malaimare Jr. (com os tradicionais travellings laterais), torna a narrativa de “O Mestre” incrivelmente magistral. Com isso, se torna prazeroso admirarmos exuberantes planos e cenas (que, além de contribuírem imensamente à narrativa, remetem naturalmente a vários elementos poético-filosóficos bidimensionais) compostas por um cineasta que domina como poucos a linguagem cinematográfica. Além disso, não há como deixar de mencionar a primorosa direção de arte que, assim como os figurinos, contribui muito para o filme. E, claro, não estou me esquecendo da bela trilha sonora que, ao utilizar canções nostálgicas, acentua ainda mais o conflito entre os personagens.
Lancaster Todd é, de fato, uma incógnita. E o roteiro, por sua vez, faz questão de enfatizar sua enigmática personalidade. Afinal, no filme, permanece a dúvida de que o homem possa ser um verdadeiro gênio e filósofo ou, simplesmente, um grande charlatão, que, embora aparente exercer domínio sobre tudo e todos, demonstra, no entanto, ser bem submisso a sua esposa (Amy Adams, em umas de suas melhores atuações). Assim, a relação entre mestre e aprendiz culmina em algo indubitavelmente incerto em relação aos dois homens, que, apesar de acreditarem na fé como “razão da existência” e possivelmente serem ligados de outras vidas passadas, estão – assim como todos – à mercê da natureza. E é essa a principal mensagem que o filme nos transmite, aprofundando a banal vida de um homem problemático que procura em seu mestre a solução para seus conflitos. “Podemos estar ligados uns aos outros há milhões, bilhões e até mesmo trilhões de anos”, diz Lancaster – ao rebater um sujeito que lhe questionara – tal frase que reflete a fé de um mestre que é propagada entre muitos seguidores que o idolatram a fim de acreditar em algo que, sendo cientifico ou religioso, os conforta.
Ou seja, mais do que um filme sobre Cientologia ou qualquer outra religião, “O Mestre” é uma sofisticada e concisa abordagem sobre a origem, os problemas e a filosofia da vida, da alma. Paul Thomas Anderson (contando com sua brilhante equipe e um poderoso elenco) realiza um ambicioso trabalho que – embora pudesse ser mais claro e direto em sua proposta narrativa a fim de evitar inevitáveis ambiguidades e incertezas – resulta em uma obra, em partes, complexa e mais do que gratificante a nos fazer juntar todas as peças e refletir sobre os inquietantes mistérios da loucura e da vida, digo, da natureza de todos nós.
OBS*: Ainda não consigo entender o porquê da decisão da Academia de selecionar somente nove filmes para a categoria de melhor produção do ano, uma vez que poderia contemplar brilhantes trabalhos (como “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, “007 – Operação Skyfall” ou “O Mestre”) com uma simples indicação que completaria o número total permitido. É por essa e por outras que o Oscar, a cada ano, perde cada vez mais sua credibilidade. Se é que alguém liga para isso...
01 de Fevereiro de 2013.