Adaptar uma obra como A Longa Marcha, de Stephen King, sempre pareceu uma missão impossível. A ideia de transformar em filme a história de cinquenta jovens forçados a caminhar até que apenas um sobreviva carrega um problema evidente: como manter o público engajado em uma narrativa em que, aparentemente, nada acontece além de passos incessantes? Esse dilema atravessou décadas e já afastou nomes como George A. Romero e Frank Darabont, que tentaram levar o projeto às telas sem sucesso. Coube à Lionsgate finalmente tirar a ideia do papel, chamando Francis Lawrence, que já havia comandado a saga Jogos Vorazes, e o roteirista . Mollner, conhecido por Desconhecidos. Juntos, eles entregam um filme que, mesmo irregular, consegue ser fiel ao espírito da obra e trazer força suficiente para não se perder na repetição.
O primeiro desafio que o filme enfrenta está na construção de seu mundo distópico. A trama se passa em um futuro autoritário, mas o roteiro dedica quase todo o seu esforço inicial a explicar as regras da Marcha, deixando de lado detalhes do cenário político e social que sustentam esse regime. A chamada “Grande Guerra” é mencionada de passagem, mas nunca explorada de fato. Essa decisão cria uma contradição curiosa: enquanto o público recebe explicações minuciosas sobre a competição, permanece no escuro sobre a própria estrutura daquele universo. Ao mesmo tempo em que isso pode frustrar quem espera profundidade, também reforça a escolha de Lawrence em manter a narrativa sempre colada à experiência da caminhada, evitando distrações.
Esse foco absoluto na Marcha é uma das ousadias do filme. Não há flashbacks, memórias ou cortes para outras linhas de ação. Tudo acontece ali, na estrada, passo após passo. Essa decisão dá identidade à obra, mas naturalmente cobra um preço: o risco de monotonia. Para contornar isso, Lawrence aposta em recursos sonoros, fazendo dos passos, respirações e do cansaço físico dos personagens uma forma de manter a imersão. Funciona em grande parte, mas não consegue sustentar toda a jornada sem tropeços.
A narrativa é marcada por altos e baixos. O início é envolvente e desperta curiosidade imediata: o espectador quer entender como cada competidor lidará com a tortura física e psicológica da caminhada. Com o passar dos quilômetros, porém, o filme começa a se fragmentar. Há tentativas de aprofundar personagens, mas a presença de cinquenta jovens obriga a eliminar a maioria de forma apressada. A edição opta por saltos de tempo e cortes que mostram a redução do grupo, resolvendo um problema prático, mas sacrificando impacto dramático. Mortes acontecem sem peso emocional, relações que pareciam relevantes são descartadas de repente e algumas construções acabam perdendo o sentido. O roteiro até tenta driblar isso criando amizades momentâneas entre os meninos, mas nem sempre essas conexões rendem a comoção esperada.
À medida que o filme avança, o problema se intensifica. No terço final, a narrativa acelera demais, previsível ao ponto de o espectador saber exatamente o que vai acontecer, mesmo quando o roteiro tenta disfarçar. O desenvolvimento cuidadoso de alguns personagens acaba sendo desperdiçado, já que eles são eliminados sem grande impacto. O desfecho mantém fidelidade ao espírito do livro e reforça a mensagem política e social que permeia toda a história, mas perde força porque a condução até ele já havia se tornado repetitiva e apressada. O que poderia ser um clímax brutal e memorável se transforma em um fim esperado e, em certa medida, frustrante.
Se o filme funciona, muito se deve ao elenco. Cooper Hoffman e David Jonsson sustentam a trama com química e intensidade, dando ao público motivos para se importar com sua jornada. Mesmo quando a narrativa patina, a presença deles mantém a atenção viva. Garrett Wareing também entrega uma performance convincente, enquanto Mark Hamill, em um papel menor, simboliza o autoritarismo frio e desumanizador do regime, funcionando como lembrete constante do que está em jogo. É curioso notar que o roteiro investe na construção de laços entre os jovens, mas, ao descartá-los de forma brusca, cria uma incoerência: pede ao público que se envolva emocionalmente, mas logo priva esse envolvimento de sentido.
Apesar das irregularidades, o filme nunca deixa de carregar mensagens poderosas. Há uma crítica clara ao autoritarismo, à banalização da vida humana e ao espetáculo do sofrimento. A Marcha não é apenas um jogo cruel, mas um reflexo de regimes que transformam pessoas em descartáveis, sustentados pelo medo e pelo fanatismo. Ao mesmo tempo, o paralelo com reality shows é inevitável: o público que acompanha, vibra e consome a tragédia alheia não é muito diferente da audiência sedenta por entretenimento barato no nosso mundo real. É nessa camada simbólica que a obra encontra sua maior força, transformando a caminhada em metáfora social.
Ao final, A Longa Marcha: Caminhe ou Morra entrega exatamente o que promete: uma experiência desgastante, que faz o espectador sentir o peso e a exaustão da jornada. Isso é mérito, mas também problema. O filme cansa, assim como a caminhada cansa, e nem sempre esse cansaço é intencional. Ao mesmo tempo, é impossível ignorar a dificuldade da adaptação. O fato de o filme existir, após décadas de tentativas frustradas, já é por si só uma conquista. Francis Lawrence e . Mollner assumem as limitações da história e conseguem extrair algo que, mesmo longe de perfeito, é digno de respeito. É um trabalho que divide opiniões, instiga discussões e reforça a força do material original. Não é apenas sobre jovens caminhando até a morte; é sobre a crueldade de um sistema que coloca vidas humanas a serviço de um espetáculo, e sobre como seguimos aceitando marchar, passo a passo, mesmo quando sabemos que o fim é inevitável.