A Meia-Irmã Feia chegou aos holofotes após sua estreia no Festival de Sundance, e rapidamente se consolidou como um dos grandes destaques do evento — e, para muitos, um dos melhores filmes de terror do ano. A diretora e roteirista Emilie Blichfeldt revisita o clássico conto da Cinderela, mas troca a magia do castelo pela carne exposta da imperfeição. Seu olhar não se volta para a princesa, mas para quem sempre ficou à sombra dela: a meia-irmã. A partir dessa perspectiva, o filme mergulha em um conto de fadas distorcido, onde a beleza é sinônimo de poder e o corpo se torna campo de batalha.
O grande mérito de Blichfeldt está em construir uma história familiar e, ao mesmo tempo, totalmente inédita. A estrutura é reconhecível — o reino, o príncipe, o baile —, mas tudo é filtrado por um tom sombrio e ácido, sustentado por uma direção que mistura horror físico e humor cruel. A diretora não se contenta em apenas inverter o ponto de vista; ela desmonta o mito da Cinderela, expondo o quanto essa busca pela perfeição estética pode se tornar uma prisão — especialmente em um mundo onde aparência significa sobrevivência.
A protagonista Elvira, interpretada por Lea Myren, é uma jovem constantemente ridicularizada pela mãe e pela sociedade por não se encaixar no padrão de beleza. O nariz torto, o aparelho nos dentes e o corpo fora do ideal fazem dela um alvo fácil, mas também uma figura de empatia imediata. Blichfeldt constrói essa identificação com cuidado — o público torce por Elvira, sente sua dor e entende suas frustrações — até que essa compaixão é usada contra nós. Conforme a personagem mergulha em sua própria obsessão, a empatia dá lugar ao desconforto. A jornada de vulnerabilidade para arrogância acontece de forma gradual e dolorosa, tornando inevitável a lembrança de “A Substância”, de Coralie Fargeat, pela forma como o corpo se transforma em metáfora e em instrumento de horror.
O longa acompanha a tentativa desesperada de Elvira e de sua família de ascender socialmente após a morte do pai de Cinderela. Sem dinheiro, a mãe vê na aparência da filha uma chance de salvação. Daí nasce uma corrida doentia pela beleza, repleta de procedimentos e transformações grotescas — uma ironia cruel em uma época em que cirurgias estéticas nem sequer existiam. O body horror aqui não é gratuito: cada cena de deformação, cada ferida aberta, funciona como uma crítica direta à cultura da aparência e à ideia de que ser bonita é o mesmo que ser aceita.
Blichfeldt conduz essas cenas com coragem. Não há suavização, nem conforto. A câmera se aproxima do que queremos evitar olhar, e o resultado é uma experiência de repulsa genuína — mas também de riso nervoso. A comédia surge de maneira ácida, quase involuntária, como se o grotesco e o ridículo andassem de mãos dadas. Há uma estranha diversão em ver até onde Elvira irá por reconhecimento. O filme é cruel, mas também fascinante, porque reflete com clareza um espelho da própria sociedade contemporânea: obcecada por filtros, procedimentos e validação.
O que mais impressiona é como a diretora constrói essa crítica sem precisar abandonar o universo dos contos de fadas. Ela incorpora elementos simbólicos — o sapato, a abóbora, o baile — de forma sutil e criativa, sempre distorcendo o que é conhecido. A icônica cena do sapato, por exemplo, ganha aqui um significado grotesco e perturbador, tornando-se uma das passagens mais angustiantes do longa. O mesmo vale para o simbolismo da metamorfose: a transformação de Elvira não é mágica, é física, dolorosa e cheia de sangue.
Visualmente, A Meia-Irmã Feia é um espetáculo de desconforto e beleza. A fotografia, com tons sombrios e iluminação barroca, reforça o contraste entre a pureza dos contos de fadas e a podridão escondida por trás deles. Os figurinos seguem essa mesma linha: exuberantes, ornamentados, mas sempre à beira do grotesco. Tudo parece belo até o momento em que se aproxima demais. Blichfeldt recria o período com autenticidade, mas usa o cenário apenas como pano de fundo para uma história universal sobre desejo, inveja e identidade.
Outro ponto alto é o uso impecável de efeitos práticos e maquiagem. Em tempos em que o CGI domina o cinema de horror, é refrescante ver uma produção que aposta em recursos tangíveis, capazes de causar incômodo real. As transformações de Elvira são encenadas com um realismo que provoca náusea e fascínio. Em certos momentos, o espectador se vê dividido entre o impulso de desviar o olhar e o desejo mórbido de continuar assistindo.
Blichfeldt demonstra uma maturidade impressionante para uma diretora estreante. Seu roteiro conduz o espectador por uma montanha-russa emocional: começamos simpatizando com a personagem, depois a rejeitamos, e por fim, somos deixados em um estado de desconforto absoluto. Essa alternância é o que torna o filme tão envolvente. A diretora brinca com as expectativas do público e, de certa forma, com a própria moral dos contos de fadas. Afinal, quem é a verdadeira vilã? A meia-irmã, a mãe, a sociedade — ou a ideia de que a beleza é o único caminho para o amor?
Mesmo quando flerta com o exagero, o longa nunca perde o controle. Tudo está a serviço da mensagem central: o preço da beleza é o próprio corpo. A sequência final, por exemplo, é um choque. Não apenas pelo horror explícito, mas pelo que representa — a total dissolução da humanidade de Elvira em troca de um ideal impossível. É o ponto de não retorno, o instante em que o conto de fadas se desfaz por completo.
A Meia-Irmã Feia não é um filme sobre sustos, mas sobre desconforto. É uma história que provoca, questiona e, acima de tudo, gruda na mente. Quando os créditos sobem, a sensação é de exaustão e fascínio. O público sai do cinema com imagens difíceis de apagar — e talvez com uma nova consciência sobre o quanto de dor pode existir por trás da beleza.
Em resumo, Emilie Blichfeldt entrega um dos filmes de terror mais originais e inquietantes do ano. Seu olhar transforma o mito da Cinderela em um estudo visceral sobre aparência, desejo e autodestruição. O resultado é um conto de fadas grotesco, belo e repulsivo, que mostra que o horror mais assustador talvez não esteja nos monstros — mas no espelho.