Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Tár

Separar a obra do artista é necessário ou impossível?

por Aline Pereira

A combinação entre a consolidação das redes sociais e a revisão – lenta, mas natural – de nossos conceitos sobre comportamentos que são inaceitáveis aqueceram o debate sobre a separação entre obra e artista. É possível admirar a arte de uma pessoa detestável? Mais do que isso: é preciso separar? Essas são algumas das questões que Tár nos coloca de forma intensa e com uma performance memorável na carreira de Cate Blanchett. Um dos grandes destaques da temporada de premiações em 2023, o filme de Todd Field (Entre Quatro Paredes) caminha em um crescente de angústia e inquietação.

A protagonista da história é a maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett), regente da Orquestra Filarmônica de Berlim e uma das artistas mais conceituadas em seu ramo. Como mulher no meio musical, Lydia ganhou destaque ao se tornar a primeira diretora feminina da Filarmônica e se prepara para momentos importantes em sua carreira: o lançamento de um livro de memórias e a gravação de uma grande sinfonia. Mas a trajetória de sucesso também é marcada por controvérsias, já que ela tem um histórico de comportamentos controladores, abusivos e narcisistas que, em última instância, a tornam alvo em um caso de suicídio de outra artista.

Protagonista complexa: Tár é um dos melhores filmes de Cate Blanchett 

Ao longo dos últimos anos, a onda de denúncias e exposição de predadores na indústria artística inspiraram uma longa lista de produções que revelam as raízes profundas da violência – sexual, psicológica, física – escondida sob a fachada glamurosa da arte. Ainda que um possível esgotamento do “gênero” seja questionável (não pela relevância, mas pelas abordagens), Tár se distancia ao encontrar uma protagonista que nos mantém inquietos e incomodados o tempo todo. 

Logo nos primeiros minutos, quando somos apresentados aos feitos extraordinários de Lydia, é difícil não se deixar levar pelo sentimento de admiração e, mais do que isso, de torcida por ela – fica claro que grandes sacrifícios foram necessários e que, acima de tudo, a artista é genial no que faz. Existe uma aura de poder que atrai também pela personalidade distante e enigmática da personagem. Mas basta a trama avançar um pouco para que pequenos sinais vermelhos comecem a surgir e deixar claro que o sentimento de intimidação causado por Lydia é também um alerta de que pode haver algo nela. 

A combinação entre essas características tornam a protagonista de Cate Blanchett incrivelmente realista e, não à toa, parte do público pensou que Tár fosse baseado em uma história real (não é). Todas as atitudes que Lydia toma durante sua trama são carregadas de nuances, e o comportamento “morde-e-assopra” ilustra um tipo de perfil controlador, que é sutil, que paralisa quem está ao redor e que se esconde em suas camadas de excentricidade. 

É possível separar a obra do artista? 

Em uma das primeiras cenas, vemos Lydia dar aula em uma tradicional escola de música: a princípio, sua presença é inebriante e o conhecimento musical aliado à sensibilidade artística e ao domínio das palavras explicam o nervosismo de seus alunos – parece impossível questionar sua mestre em qualquer coisa. Quando um dos aprendizes diz que “não curte muito” Bach, um dos músicos mais clássicos da história, porque ele era misógino, os argumentos de Lydia se transformam em uma avalanche perigosa de justificativas que nos deixa tão desconcertados quanto o jovem em tela. 

Surge a partir daí um debate sobre uma questão complexa: é possível (ou, talvez, necessário) admirar, consumir e continuar mantendo viva a obra de um artista que teve comportamentos nocivos – por vezes criminosos – em sua vida pessoal? Quando a carreira e os relacionamentos de Lydia começam a ser atravessados por acusações e suspeitas, todas as questões que envolvem essa discussão vêm à tona com impacto e ótima dramaticidade.

A “cultura do cancelamento” é real ou é só um sinal de que comportamentos nocivos serão, sim, apontados publicamente? “Ser acusado é o mesmo que ser culpado”, diz um outro figurão da música com quem Lydia conversa. É uma frase que soa estranha nos dias de hoje. A gente sabe o que está por trás desse discurso.  

É interessante notar ainda que podemos levar esse tópico de Tár ainda mais adiante justamente por termos uma protagonista tão marcante. Lydia está em meio a uma balança de privilégios: se por um lado, o fato de ser uma mulher homossexual faz com que o esforço para conquistar seu espaço seja muito maior do que para os homens com quem convive, por outro, ela está em uma posição de poder ocupada por pouquíssimas pessoas e que a concede beneficios, especialmente em relação à influência que exerce e que, em certa medida, a blinda de algumas consequências.  

O primor nos detalhes torna Tár uma obra para ser lembrada

A construção da sensação de angústia que Tár nos oferece é um trunfo na história: os primeiros minutos não nos deixam prever o que virá adiante e, aos poucos, o drama ganha elementos de suspense, investigação e – aqui talvez seja uma interpretação pessoal – algo de sobrenatural. A vida de Lydia parece, em alguns momentos, uma sequência de tragédias anunciadas e o que estamos acompanhando é a história de uma derrocada. Como em um castelo de cartas, tudo o que desmorona vem sem muita ordem e sem muito estrondo. 

Enquanto isso, é fascinante acompanhar também o caos e a sutileza de Lydia na forma como manipula e tenta encontrar soluções a seu favor. E não é que ela parece particularmente satisfeita ou sádica, mas até seu sofrimento é cheio de pormenores que a tornam ainda mais intimidadora e inacessível, características que se reforçam também na interação com as pessoas que são mais próximas. Um dos destaques aqui é, sem dúvidas, Francesca (Noémie Merlant, de Retrato de Uma Jovem em Chamas), assistente de Lydia. Não vamos dar spoilers, claro, mas existe uma parte do relacionamento entre elas que nunca aparece na tela, mas que é cristalino. 

Tár é excepcional ao contar uma história sobre os lados mais complexos da glória, do ego, do poder e da genialidade – o que isso significa, afinal?