Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Bugonia

Emma Stone abraça vale da estranheza em comédia sombria com alienígenas, conspirações e o (possível) fim da humanidade

por Diego Souza Carlos

O bom de adorar cinema é que se você se abrir para a pluralidade de histórias disponíveis nas telonas, pode presenciar o surgimento de grandes preciosidades dentre pedras que podem até brilhar, mas não tem valor algum. Um ditado antigo já dizia que "quando o mel é bom, a abelha sempre volta" e quem já assistiu a algum filme de Yorgos Lanthimos sabe que o sabor de sua arte não é nada convencional, mas nunca (nem mesmo nas entradas menos atrativas) deixa de ser imperdível.

O aclamado e controverso Pobres Criaturas foi responsável não apenas pelo Oscar de Melhor Atriz de Emma Stone, mas também foi a grande definição da artista como a diva do cineasta. Depois da adaptação da obra do autor escocês Alasdair Gray, os dois acabam de chegar à quarta colaboração em longas (não esqueçamos de A Favorita), Bugonia, um filme que pode tirar as desconfianças daqueles que se sentiram decepcionados com Tipos de Gentilezas.

Um dos melhores filmes do ano

Bugonia acompanha dois homens obcecados por teorias da conspiração que sequestram a poderosa CEO de uma grande empresa. Convencidos de que ela é uma alienígena prestes a destruir a Terra, eles vão, pouco a pouco, entrando em um vale da estranheza proposto pelo característico cinema de Yorgos. Desde o início do filme, algumas mensagens são bem claras: a tensão social pautada no conflito de classes é um bom ponto de partida para a trama, mas isso é apenas a ponta do iceberg.

Isso não é necessariamente novo em seus trabalhos, mas o que o realizador faz aqui é alimentar uma atmosfera constante de paranoia e desconfiança. De mãos dadas com dualidades que se transmutam a todo instante - os monstros e a mocinha, a vilã e as vítimas, os caipiras e a moça rica, os humanos e a possível alienígena -, ele faz aquilo que poderia ser apenas um thriller psicológico se tornar em um dos filmes mais divertidos do ano.

Bugonia é aquele tipo de longa que joga com a audiência em um constante flerte com diferentes possibilidades. Enquanto ficamos presos nesta casa e vivenciamos parte do cárcere da executiva, também entramos em um ritmo de delírio coletivo. Estes homens conspiracionistas são apenas pessoas cooptadas por uma extrema-direita regada a fake news ou Michelle é realmente uma alienígena pronta para acabar com o planeta?

Apenas por esse fato o longa já teria certo mérito para o público que adora suspenses, mas é apenas uma das formas de se enxergar a trama. O roteiro não apenas brinca com expectativas, mas leva os atores a monólogos e interações milimetricamente executados. Em alguns momentos é um balé teatral, em que os argumentos de ambos colidem e a situação vai se tornando tensa a ponto de ser palpável e a provocação do iminente atrito diverte.

Com créditos a Jang Joon-hwan, cineasta responsável pelo filme que inspirou Bugonia, Save the Green Planet!, o texto assinado por Will Tracy abre o palco para que os atores se divirtam. O trabalho do roteirista de O Menu, Succession e O Regime consegue equilibrar, de maneira bem curiosa, o misto de drama e suspense com muita comicidade. Não que o humor seja algo ausente nas obras de Yorgo, de maneira alguma, mas é curioso ver como um filme consegue descer e subir entre temas densos com pitadas de comédia ácida.

Emma Stone e Jesse Plemons elevam a força de Bugonia

Mesmo que o personagem do jovem Aidan Delbis consiga alguns dos momentos mais ternos em um filme eventualmente melancólico, é nas atuações dos veteranos que Bugonia ganha seu principal apelo. Jesse Plemons é Teddy Gatz, um apicultor que vive com seu primo Don (Delbis), um garoto ingênuo que vê em seu único familiar presente uma referência.

Em um bom casamento entre caracterização e performance, o ator de Guerra Civil abraça os trejeitos de um homem simples e interiorano, talvez ignorante em um linguajar mais direto, que alimenta a sua triste existência com uma paranoia sem fim - mas muito bem arquitetada e explicada (para ele) pelos lugares mais aleatórios da internet.

Já Emma Stone interpreta Michelle Fuller, a CEO de uma grande corporação farmacêutica que, em um mergulho egocêntrico em sua própria identidade, acredita estar fazendo algo relevante para seus clientes e funcionários. Pela força que essa executiva exerce sobre seu império, a personagem parece friamente decidida a reverter a situação do sequestro com várias táticas de persuasão. Ela representa o quão ambígua pode ser a figura corporativa, o que a dinamiza entre vilã e vítima ao decorrer da trama - processo também vivido pelos demais protagonistas.

Bugonia é um recorte irônico sobre a decadência da humanidade

Um retrato sobre a era da desinformação, os primos acabam ludibriados por teorias da conspiração que os fazem tomar a decisão radical de sequestrar uma pessoa. Embora seja uma caricatura sobre o emburrecimento das pessoas quanto à checagem de notícias e fácil indução das fake news na atualidade, Yorgos os coloca também como a parte mais fraca da engrenagem ao se aprofundar em suas histórias.

Mesmo ao evocar de forma bem-humorada os milhões de “tios do zap” que vemos por aí, mas aqui levados ao extremo, os motivos que os levaram a estes fins são um pouco mais complexos do que se esperaria: seus motivos são concretos e, levados pelo desespero de uma sociedade que não os enxerga, se tornam presas fáceis de discursos vazios.

Uma vida miserável, com abusos e perdas significativas, a falta de perspectiva e a ilusão de que a salvação é tão inalcançável que só poderia existir em uma ideia irreal dá sustentação aos seus atos. O longa poderia se resumir a uma alegoria de como o capitalismo corrói a humanidade para formar consumidores (e no caminho destrói vidas), mas pelas mãos do cineasta a produção ganha uma identidade única, já que Yorgos não desiste do vale da estranheza enquanto brinca com gêneros opostos.

Repare: trata-se de uma ficção científica desprendida de grandes recursos padrões para este tipo de filme. O apuro estético é visível, uma escolha que sustenta o surrealismo imposto pela narrativa, excluindo imagens que poderiam ser mais duras e frias em função de um visual que impõe uma energia fabular. O que torna o longa único, e engraçado, é pensar que todas estas escolhas estão encapsuladas em uma história que conversa diretamente com a vida real.

O fim, para alguns, pode até enfraquecer algumas ideias, mas é coerente (e surpreendente) dentro de sua própria estrutura. Se Emma Stone é uma alienígena ou não, só assistindo ao filme para saber, mas Bugonia consegue ser crítico à sociedade sem abrir mão tanto do humor quanto da triste (e inevitável) ideia de que a humanidade está implodindo.

Filme assistido na 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo