Críticas AdoroCinema
3,0
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Santos de Todos os Gols

A (quase) semiótica do gol

por Renato Furtado

Céu/inferno, vida/morte, orgasmo/apatia, júbilo/desespero, triunfo/derrota, auge/declínio, divino/humano. Não são muitos os elementos da existência humana que podem conter tantos pares de sensações e conceitos em si, espremidos, muitas vezes, em milésimos de segundos, em brilhos curtos de improbabilidades, em temporalidades que não podem ser medidas pelos instrumentos científicos. Talvez, de fato, nada possa conter tanto além do gol, o momento máximo de qualquer partida de futebol e temática primordial do eficiente e bem montado documentário Santos de Todos os Gols.

Recorrendo às mais diversas imagens de arquivos de todas as épocas, dos anos 1910 até hoje, para ilustrar os tentos marcados pelo Santos Futebol Clube, recordista em número de gols marcados no mundo, a diretora e roteirista Lina Chamie entrevista torcedores, pensadores e jogadores — incluindo craques globais como Pelé, Coutinho, Neymar, Diego e Elano, entre outros de relevância internacional e nacional — relacionados à e aficcionados pela equipe da Baixada Santista. Mas se a ideia inicial parece ser apenas mapear a trajetória vitoriosa do alvinegro praiano, a cineasta revela que está interessada em muito mais.

Para além de seu espirituoso desenho de som, que confere uma tonalidade operática a determinadas jogadas em tela, investindo também em efeitos sonoros diversos como ruídos de bombas ou de foguetes para os gols mais potentes, Chamie demonstra ser uma documentarista muito mais preocupada com a questão humana do que com a técnica em si de seu ensaio futebolístico. Seu cinema não é necessariamente o cinema de montagem, mas o cinema da escuta, integrando-se facilmente à escola brasileira de não-ficção para, sobretudo, extrair a interpretação semiótica do gol por parte dos depoentes.

Para os jogadores, é evidente que o gol é a realização máxima de seu ganha-pão, e para os verdadeiros astros da bola, a elevação do esporte bretão ao nível de arte — independemente da filiação do espectador a algum time de futebol que não seja o Santos, é difícil passar incólume às geniais jogadas que compõem esta narrativa, assim como às claras chances de gol perdidas. Para o público em geral, o povo da arquibancada, o gol representa outra descarga emocional inigualável e muito específica, uma catarse tão poderosa que pode colocar o mundo na mais completa quietude, como aponta um torcedor.

Mas é centrado nos testemunhos de pensadores, sejam eles escritores, músicos ou jornalistas que torcem pelo Santos, que este documentário alcança seus melhores momentos. Através das palavras de nomes como Luiz Zanin — crítico de arte e cinema que funciona como uma espécie de protagonista informal desta não-ficção —, Nuno Ramos, José Roberto Torero, José Miguel Wisnik, Mônica Waldwogel e Barbara Gancia, Chamie estrutura um elogio ao futebol como modalidade formadora de uma linguagem não-verbal riquíssima, repleta de significados e simbolos e de potência criativa.

É, portanto, quando Santos de Todos os Gols aproxima o esporte bretão do status de arte que o filme extrapola e depara-se com suas mais ricas e prazerosas sequências, relacionando-se muito mais com o pensamento e com a emoção por trás de cada conquista do que com o âmbito físico de um chute, de um drible ou mesmo de uma defesa. E é por isto também que o longa rende menos quando abre mão, mesmo que brevemente, de sua abordagem universal para favorecer um mergulho na história do clube santista. O documento, em si, é relevante, mas não carece da poética do ensaio, do sabor da significação.

Pois quando limita-se às barreiras impostas por sua premissa original, esta não-ficção arrisca perder a atenção daqueles que não são fanáticos pelo Santos Futebol Clube, aqueles que, em outras palavras, apaixonados pelo futebol, sabem e podem apreciar os triunfos santistas, mesmo sobre seus clubes de coração. Basta deixar o antagonismo dentro de campo, para encontrar, quase sempre, uma narrativa muito refinada sobre a modalidade esportiva mais popular do planeta Terra — e nem é preciso dizer que para os santistas roxos, Santos de Todos os Gols é um prato mais do que cheio.

Tendendo mais, felizmente, à exploração filosófica e semiótica do gol e do esporte bretão, Santos de Todos os Gols quase consegue atingir as possibilidades narrativas que deixa entrever. Por outro lado, sendo Chamie uma santista ela mesma, sua ocasional participação é sempre muito bem-vinda, adicionando sua própria voz aos de seus entrevistados em um diálogo cheio de paixão pelo time em questão. Mas de uma forma ou de outra, Santos de Todos os Gols obtém exatamente aquilo que persegue desde o início: ressaltar a importância da emoção no futebol: este é um filme de emoção, e ponto final.