Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
No Coração do Mundo

Um longo durante

por Sarah Lyra

No Coração do Mundo é uma daquelas produções que deixa evidente o propósito de cada segmento envolvido na produção de um filme. Da seleção de atores, passando pelo design de produção, figurino, roteiro, direção, até finalmente chegar à edição e montagem, o trabalho dos diretores Gabriel MartinsMaurílio Martins demonstra uma maturidade impressionante em captar não só a essência de seus personagens e do mundo a que eles pertencem, como também os detalhes técnicos que fazem a diferença e enriquecem o resultado final, se apresentando como um todo que certamente já é um dos melhores filmes brasileiros do ano.

Entre seus acertos, o que chama atenção de imediato é sua ambientação minuciosamente calculada, mas que ao mesmo tempo parece simples e sem esforço, tamanha é sua fluidez. As famosas caixas de som com declarações sentimentais para seus homenageados, embaladas por uma música dramática de Lara Fabian; toalhas estampadas de plástico sobre uma mesa de jantar; cortinas de chita; um quadro com a imagem de Jesus Cristo na entrada da casa; e um estabelecimento que atua ao mesmo tempo como papelaria, loja de roupa e amarinho. Tudo da maneira mais familiar e brasileira possível. O mesmo nível de atenção é dado a alguns pequenos e rápidos gestos executados pelos personagens, como o ato de molhar a ponta do pão francês na xícara de café com leite e a jornada da matriarca que se desdobra para vender amaciante em garrafas PET na vizinhança.

Situado na cidade de Contagem, em Minas Gerais, mais especificamente na região de Laguna, No Coração do Mundo é, acima de tudo, um comentário social. Não há uma trama pautada em pontos de virada, ápice e resolução tradicionais, e também foge à tentação de empregar uma lição de moral ou mudança radical de vida dos personagens ao fim. Aqui, os diretores optam pelas sutilezas, nos conduzem de forma intimista pela vida cotidiana e senso de comunidade dos moradores de Laguna, e priorizam o desenvolvimentos das personalidades de Ana (Kelly Crifer), Marcos (Leo Pyrata), Selma (Grace Passô) e Rose (Barbara Colen).

É interessante observar também como as figuras maternas da história, que aparecem pontualmente, conseguem traçar uma narrativa própria e ao mesmo tempo determinante para interligar os acontecimentos mostrados, o que demonstra também o cuidado e a habilidade dos realizadores com o tempo e o ritmo pensados para cada cena. Igualmente poderosa é a maneira como essas duas mães lidam com a dor opressora a que são submetidas, equilibrando uma certa inexpressividade e apatia diantes dos fatos — possivelmente causadas pelo choque — e no caso de uma delas atitudes extremistas em busca de justiça, o que ilustra brilhantemente a contenção do luto dentro delas.

Fica claro, portanto, que ao encerrar a narrativa de forma semelhante à maneira como foi aberta, os Martins percebem que os dilemas enfrentados pelo painel de personagens é muito mais profundo e enraizado do que poderia explorar em um recorte de pouco mais de duas horas. O respeito por essas figuras, que na verdade representam uma classe de trabalhadores que vai muito além de uma pequena vizinhança de uma cidade do interior, assim como a recusa em romantizar suas dificuldades e dores acaba se tornando o grande mérito do longa. Embora se apresenta como ficção, No Coração do Mundo é certamente uma obra que muito tem a dizer sobre a realidade desamparada de uma população e sua trajetória marcada por um breve começo, um longo "meio" e nenhum fim.